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Regime e Oposição: a Ordem dos Advogados no epicentro da Revolução Nacional


Fez ontem 91 anos, a Ordem dos Advogados. Publico o texto de uma intervenção que, no âmbito do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa me foi permitido efectuar.


Surgiu a Ordem dos Advogados como «pessoa jurídica», sem mais qualificativos, em 1926, em plena Revolução Nacional; conheceu em 1933 o período em que passou a integrar a categoria jurídica de Sindicato único dos Advogados, elemento primário da organização corporativa. A sua plena integração nas estruturas do corporativismo nunca veio, porém, a alcançar-se, pois, pela sua protecção à sombra do Estatuto Judiciário, desde 1927, foi a ligação ao Ministério da Justiça que em 1944, dentro dos limites do viável, lhe salvaguardou a autonomia, enfim consagrada como lei em 1984.

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Fundada a 12 de Junho 1926 [i] , a Ordem dos Advogados surgiu duas semanas após a Revolução do 28 de Maio, dando corpo a um projecto que se atribuiu ao ministro da Justiça da República. António Abranches Ferrão [ii] , na sequência de vários outros projectos que provinham desde meados do século dezanove, um dos quais o de José da Veiga Beirão, levado ao Parlamento em 1887 [iii]. Durante oitenta anos se tentara, em vão, ir mais além do que a simples Associação dos Advogados de Lisboa, criada em 1838, sob determinação de D. Maria II, associação que, segundo lei fundadora da Ordem, ficou incumbida de convocar a assembleia geral que instalaria o novo corpo representativo da totalidade dos advogados portugueses.
Surgiu ao mesmo tempo que a Câmara dos Solicitadores, e curiosa e mesmo irónica é a razão pela qual se manteve a dicotomia destes dois organismos, entre os quais se repartia o mandato judicial.
Dando a palavra ao ministro Manuel Rodrigues Jr., [iv] ao qual se deve o diploma fundador:
«A repartição do mandato judicial não existe em vários países, nem parece absolutamente necessária; mas existe entre nós e é uma razão para que subsista, talvez a única».
Manuel Rodrigues, como ficaria conhecido [v] , havia sido nomeado ministro da Justiça e dos Cultos dias antes, a 3 de Junho. Invulgar pela inteligência, num só ano fizera todo o ensino liceal e alcançara o diploma do curso complementar de ciências jurídicas, em Coimbra, com a nota máxima de 20 valores. Doutorado, seria um dos da plêiade de Cabral de Moncada, Beleza dos Santos, Mário de Figueiredo, escol de altíssima craveira intelectual e todos com obra no campo da Justiça.
Em dois anos de ministério, pois cessaria funções a 11 de Abril de 1928, haveria de dar corpo a realizações de enorme vulto: reorganizara o Conselho Superior Judiciário, reformara o processo civil e o criminal, as regras atinentes ao funcionamento dos serviços de justiça, reorganizara o Arquivo de Identificação, regulando e tornando obrigatório o uso do bilhete de identidade. No mesmo dia em que é firmado o diploma da criação da Ordem dos Advogados foi nomeado José Albertos dos Reis, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, para elaborar os projectos de alteração dos Códigos de Processo Civil e Comercial.
Quando em 1993 deu à estampa um pequeno opúsculo [vi] em cujas 95 páginas compila, em linguagem clara, o que fora parte da sua obra na Justiça, sublinha da mesma, menos a ideologia do que considerara ser a «Pátria regenerada» fruto da «gente nova, verdadeira intérprete da alma nacional», libertadora de uma Nação que estava «a saque», mas o que, no campo da eficácia, da organização, da pragmática lograra construir, visando a celeridade e segurança.
Cito [páginas 18 e 19] este trecho elucidativo: 
«Quando, em 1926 dispus que nenhum juiz podia tomar posse dos lugares para que fosse transferido ou promovido sem apresentar certidão comprovativa de haver proferido sentença nos processos conclusos, encontraram-se muitos pendentes há 40 ou 50 anos, e certo juiz ate um julgou um processo que tinha entrado no tribunal no dia em que fizera exame de instrução primária».

Regressaria ao Ministério em 1932 para um mandato que perduraria até a 28 de Agosto de 1940. Faleceria em 1946. Num comovido discurso de memória, proferido na terra natal do homenageado, a freguesia da Bemposta, concelho de Abrantes [vii] , o advogado António de Sousa Madeira Pinto, Vogal do Conselho Superior, em representação do Conselho Geral, sublinharia precisamente que, fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues vira ser a advocacia, sonho da juventude, breve episódio na sua vida, ele que deu vida à Ordem dos Advogados.
Integrara o que se chamaria o «grupo de Coimbra» – Fezas Vital, Mendes dos Remédios, Costa Leite (Lumbrales) e Oliveira Salazar – que os “espadas” do 28 de Maio chamaram ao poder, vitorioso o 28 de Maio e instaurada, assim, a Ditadura Nacional. Quando, incompatibilizados com a situação política e militar, Salazar e Mendes dos Remédios regressam a Coimbra, Manuel Rodrigues fica e prossegue a sua obra sob o Triunvirato de que faziam parte pelo Almirante José Mendes Cabeçadas, Jr., Óscar Fragoso Carmona e Gomes da Costa.
Eclético do ponto de vista político, chegando a granjear fama de socialista, como diria Marcelo Caetano, era um republicano conservador, alinhado com o ideário jurídico que em Itália encontrara expressão no pensamento de Alfredo Rocco, em despique de ideias e de ambição com Salazar, relativamente ao qual publicou no último dia do ano de 1938 um artigo irónico em O Século intitulado O Homem que Passou, pelo qual perpassava a ideia de que aquele se deveria retirar da política.
Cito, com a grafia original, este excerto, em que à prosa de fino estilo, se junta como se uma dorida mensagem:
«Cada homem que passa traz, na medida própria, o seu contributo ao mundo; enriquece-o com o esfôrço do seu braço e com a fulguração do seu cerebro e, quando o braço descai fatigado ou o cerebro já não fulgura, o seu contributo está prestado. Disse a sua mensagem e doravante a sua mensagem não sugestiona, perturba; a sua presença não anima, embaraça; e até a sua ternura não aquece, fatiga. E avanço mesmo em dizer que para êle próprio é um bem. Em um mundo em que tudo cansa também a vida cansa; mesmo quando se desenhou um alto ideal e êle se fez realidade, mesmo quando a fada que doba os fios da existencia os dobou sem os enredar.»
Um «sobrevivente nato», o apodou Filipe Ribeiro de Menezes, um dos mais recentes e conceituados biógrafos de Salazar [viii] .
O diploma, pelo qual deu vida à Ordem dos Advogados, tenta, como se diz no preâmbulo, uma arquitectura de compromisso entre o modelo liberal francês e o modelo italiano.
Quais eram eles, resume-o, muito oportunamente, Alberto Luís, em artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados [ix] .
Segundo o primeiro, o exercício da Advocacia pressupunha licenciatura em Direito por Universidade do Estado, e, apesar do carácter liberal da profissão, a mesma era governada por leis e regulamentos públicos, havendo lugar a um juramento que, entronizado em 1810 e sucessivamente abrogado e reposto, era no sentido de impedir os advogados de criticarem as leis e as autoridades públicas; enfim, caracterizava tal sistema a criação, alcançada em 1920, de uma Associação Nacional de Advogados.
Já o modelo italiano, decorrente de uma Lei de 25 de Março de 1926 assentava numa estruturação da advocacia que implica a sua funcionalização. Por um lado, impunha-se o elitismo decorrente de um estágio de cinco anos, seguidos de um exame de habilitação, e da existência de um quadro privativo de advogados a quem era permitido pleitear junto dos tribunais superiores; por outro, impôs um juramento de fidelidade aos superiores interesses da Nação, o que implicou a irradiação de mais de dois mil advogados, considerados refractários à ordem política vigente; enfim, a Lei Rocco 3 de Abril de 1926, uma das leis fascistíssimas, as ordens dos advogados e procuradores ficaram enquadrados como «sindicatos únicos».
Prevendo-se no mesmo que para a sua entrada em vigor haveria de cuidar-se da respectiva regulamentação, a conturbada evolução do tempo haveria, porém, de surpreender, pois ao invés do expectável, o que surgiu a 18 de Setembro foi um novo e extenso diploma que revogaria aquele que era suposto apenas regulamentar [x] e procederia, num extenso articulado de oitenta e oito artigos, à publicação de um novo estatuto da Ordem, a qual era, assim, refundada.
Qual a razão de uma tal opção legislativa perde-se na penumbra dos dias, pois que o novo diploma legal, que tornou o anterior mero «apontamento de trabalho» [xi] está desprovido de preâmbulo que lhe explique o sentido; e não cabe aqui proceder à comparação entre este novo diploma legal e o seu antecedente.
Fundador da Ordem dos Advogados, Manuel Rodrigues cuidou da sua subsistência em autonomia financeira, condição essencial da sua sobrevivência e assim atribuiu-lhe verba obtida com a procuradoria judicial e a remuneração das defesas oficiosas contadas em processos judiciais.
A 26 de Janeiro de 1927 [xii] eram 1720 o número de Advogados inscritos. O primeiro Bastonário foi Vicente Rodrigues Monteiro [xiii] . Fora durante a Monarquia Governador Civil de Lisboa, Presidente da Câmara dos Deputados, Advogado da Casa Real durante os últimos três reinados, e da Casa de Bragança.
Seguir-se-ia, entre 1930 e 1932, o mandato do Bastonário Fernando Martins de Carvalho, um republicano cujo partido abandonara para se filiar nas hostes de João Franco, pelo que, proclamada a República tivera de se exilar no Brasil onde se licenciaria no ano de 1911, só regressando a Portugal em 1915.
Eram então tempos de conservadorismo e de organização da Ordem e de convivência pacífica desta com o poder político.
Sucessivamente presente como sua parte integrante nos dois Estatuto Judiciários que se seguiram em 1927 e 1928, a Ordem dos Advogados encontraria, a partir de 1933, com a entronização do Estado Novo de formato corporativo o seu momento agónico, abrindo-se brecha quanto à questão da sua autonomia face ao novo figurino para a estruturação as entidades de Direito Público. Era então Bastonário, pois que iniciara o seu mandato a 21 de Março de 1933, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, deputado que fora à Constituinte de 1910, três vezes ministro da República democrática – Justiça, Negócios Estrangeiros e Instrução Pública – e directo colaborador de Afonso Costa.
O modelo político corporativo havia sido introduzido entre nós, como confluência de duas linhas de pensamento: pela positiva, a doutrina do Integralismo Lusitano – de António Sardinha, Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Pequito Rebelo e tantos – e a doutrina da Encíclica Pontifícia do Papa Leão XIII, a Rerum Novarum, acolhida que fora, precisamente em Coimbra, junto do Centro Académico de Democracia Cristã, fundado em 1901, cidade alfobre das mentes que, inspirados pelos princípios da Acção Católica, tornariam, no quadro tumultuoso do 28 de Maio de 1926, a Revolução Nacional no Estado Novo – Gonçalves Cerejeira, António de Oliveira Salazar, Francisco Veloso, Carneiro Mesquita, Diogo Pacheco de Amorim, Joaquim Dinis da Fonseca e José Nosolini – ; pela negativa, como reacção ao sindicalismo revolucionário que levaria Francisco Rolão Preto, um dissidente do Integralismo, à cadeia em 1934 e ao exílio, e em geral à jacobina e maçónica democracia demo-parlamentar, que orientara o regime republicano saído da Revolução de 1910.
Proferindo, a 13 de Março de 1935, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a lição inaugural do Curso de Direito Corporativo, que por via do Decreto-Lei n.º 23 23 382, de 20 de Dezembro de 1933, havia sido introduzido no currículo universitário, em substituição do curso de economia social, Marcelo José das Neves Alves Caetano, lembrando aquelas fontes como sendo as da doutrina corporativa, [xiv] aditaria:
«Nalguns países o corporativismo recebe ainda influências da doutrina socialista, e aceita grande parte do pensamento soreliano. O sistema corporativo português, porém, parece-me apenas filho destas duas correntes: a nacionalista e a católico-social. Pode apenas admitir-se a acção das doutrinas do socialismo catedrático, muito favoravelmente acolhidas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra pelo eminente Prof. Marnoco e Sousa» [xv] .
E, no seu característico estilo, formal e sistematizado, os princípios fundamentais do sistema corporativo [xvi] :

«1- A vida económica não segue uma direcção inelutável, depende da vontade humana.


«2- A actividade económica deve guiar-se por uma profunda preocupação moral.

«3- Não há duas classes sociais irredutivelmente opostas: mas um número indefinido de grupos económicos que devem operar em colaboração harmónica.
«4- A personalidade humana deve respeitar-se em toda a ordem política, económica e social.
«5- A actuação social do individuo deve desenvolver-se através do seu grupo económico.
«6- É às categorias juridicamente organizadas e dotadas de funções de autoridade pública, que o Estado deve deixar a resolução dos problemas da vida económica.
«7- A Nação é o quadro natural em que se organizam e movimentam as classes. O interesse nacional está acima de todos os interesses particulares.
«8- O Estado tem deveres a cumprir na vida económica e social. Incumbe-lhe orientar, dirigir e fiscalizar toda a actividade nacional.»

A estruturação da vida social e política portuguesa sob a égide do corporativismo deu-se por via legal. Não é de estranhar, vindo a ideia de um espírito para cuja compreensão o jurídico tem de ser convocado, como meio e como limite: António de Oliveira Salazar via no Direito forma natural de expressão das suas ideias sobre o Estado e, numa outra dimensão, limitação ao próprio Estado e com ele comungavam os que, com espírito legista, deram forma jurídica à substância política do regime. Daí que Portugal, sob a sua égide, e porque limitado pela Lei, não tenha sido um totalitarismo, o que acentuam aqueles que com isenção não toldada pela ideologia analisam o regime.
Publicado a 23 de Setembro de 1933, Decreto-Lei n.º 23 048, que aprovou o Estatuto do Trabalho Nacional, através dele se construíram três pilares fundamentais da nova ordem: primeiro, os indivíduos, a Nação e o Estado na ordem económica e social; segundo, a organização corporativa e, finalmente, a magistratura do trabalho.
Já a 11 de Abril de 1933 entrara em vigor uma Constituição, que definia no seu artigo 5º o Estado português como uma República unitária e corporativa e onde, ao enunciar o que denominou serem os «elementos políticos» considerou revestirem tal qualidade a família, as corporações e as autarquias, sendo que nas corporações morais e económicas «estarão organicamente representados todos os elementos da Nação» (artigos 17º e 18º), que ao Estado incumbia «reconhecer» (artigo 14º), havendo uma Câmara Corporativa, meramente consultiva, a funcionar junto da Assembleia Nacional (artigo 102º) [xvii] .
Interessante que num diploma, como o Estatuto do Trabalho Nacional, cuja sistemática é ele próprio a tradução de uma filosofia, a magistratura do trabalho tenha encontrado o seu lugar relevante, significativo, aliás, de novo se retoma a ideia do primado do Direito sobre a estruturação política tout court.
Num ritmo sequencial, sucessivos a este Estatuto, foi aprovado um conjunto de diplomas que complementaram a fisionomia do edifício cuja construção estava em causa:
O Decreto Lei n.º 23 049, sobre os Grémios, organismos corporativos das entidades patronais;
O Decreto-Lei n.º 23 050, sobre os sindicatos nacionais;
O Decreto Lei n.º 23 051, sobre as Casas do Povo;
O Decreto-Lei n.º 23 052, sobre a construção de casas económicas;
O Decreto Lei n.º 23 053, que cria o Subsecretariado das Corporações e Previdência Social e o Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.
De todos eles seria este último aquele que marcaria a pedra de toque do sistema e o diferenciaria do corporativismo fascista italiano porquanto entre nós tratou-se de fazer entroncar o sistema na dependência de uma entidade administrativa com ligação directa ao Governo, no caso, o Sub-Secretariado das Corporações e Previdência Social, ocupado desde o seu início até 1936, pelo matemático Pedro Teotónio Pereira, o qual seria extinto em 1950 para dar origem ao Ministério das Corporações e Previdência Social, dando-se, assim, mais um passo na governamentalização global do sistema.
Nesse ano, a 23 de Março, e precisamente a propósito desta governamentalização, Marcelo Caetano, a convite do Gabinete de Estudos Corporativos do Centro Universitário de Lisboa, proferia na Sociedade de Geografia, fazendo eco a uma revolta mansa vinda do recôndito do seu espírito essencialmente conservador, daria o mote a dúvidas que seriam, afinal, críticas:
«Ora a verdade é que no fim de 17 anos de regime corporativo não temos corporações. Portugal é um Estado-corporativo em intenção: não de facto. O mais que se pode dizer é que temos um Estado de base sindical-corporativa ou de tendência corporativa, mas não um Estado corporativo» [xviii] .
E adiante:
«Dever-se-ia ter criado nessa altura o Ministério das Corporações? Salvo o devido respeito pelas opiniões em contrário, eu penso que num regime corporativo não há lugar para o Ministério das Corporações. Parece um paradoxo.» [xix]
E, em remate lógico do seu pensamento:
«E essas grandes corporações nacionais não devem ser direcções-gerais de um Ministério: o lugar do seu encontro umas com outras e de todas com os órgãos superiores do Estado é, por definição, a Câmara Corporativa. Aí devem poder formular os seus votos, aí devem poder tratar com o Governo; aí devem pronunciar-se, como consultoras, sobre as leis da Nação.» [xx]
De corporativismo de Estado se tratou, pois, governamentalizado logo desde a sua génese, orientado a abranger a representação nacional através da sua inserção profissional, complementarmente à representação nacional através de uma Câmara electiva, alcançada por sufrágio directo, a Assembleia Nacional, que era, ao lado do Chefe do Estado, do Governo e dos Tribunais, órgão de soberania.
Mostrando a solução de compromisso alcançada, escreveria Marcelo Caetano nas suas lições universitárias de Direito Constitucional [xxi] :
«O desfavor em que se achava a ideologia democrática não o impediu [ao legislador] de consagrar na Constituição alguns dos seus princípios fundamentais, equilibrando-os com as normas relativas aos órgãos do governo e às relações entre os respectivo poderes.»
Implementado o regime corporativo, assim a questão da Ordem dos Advogados – e afinal a das Ordens profissionais cujos membros exerciam em regime liberal a sua profissão – se colocava como um dilema: ou prevalecia o espaço de liberdade em que vinham situadas, e a independência da actuação profissional dos seus filiados, que não sendo patrões não seriam também trabalhadores, no sentido dicotómico em que o binómio capital/trabalho se delineava; ou, a integrá-las no sistema corporativo, as profissões respectivas teriam de inserir em um dos termos em presença: a opção fez-se no sentido de consagrar as Ordens, e, destarte também a dos Advogados como sindicato, no caso «sindicato único».
Explicando, assim resumiria o conceito em presença João Pinto da Costa Leite (Lumbrales), em livro [xxii] publicado precisamente nesse ano de 1936, a lógica da unicidade sindical tal como a via o regime deposto a 25 de Abril: «A constituição dos sindicatos é facultativa, mas em cada distrito o Estado só dá o seu reconhecimento – que confere ao sindicato o carácter de entidade de direito público – a um único, e só esse reconhecimento lhe dá direito de se intitular sindicato nacional»,
O Estatuto do Trabalho Nacional já previa no seu artigo 40º que, no quadro da organização corporativa, «a organização profissional abrange não só o domínio económico mas também o exercício das profissões livres e das artes, subordinando-se a sua acção neste caso a objectivos de perfeição moral e intelectual que concorram para elevar o nível espiritual da Nação».
E a lei que regulamentava a Câmara Corporativa – o Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934 previa também no seu artigo 4º, que pertencia à referida Câmara, por direito próprio, um representante do «Sindicato Nacional» dos Advogados, a Ordem dos Advogados.
Foi em parte na decorrência deste princípio que foi promulgado o Decreto-Lei n.º 24 904, de 10 de Janeiro de 1935, o qual expressamente situaria a Ordem dos Advogados no território da organização política da Nação.
Facto sintomático: no dia seguinte abriria em sessão solene a Assembleia Nacional, encerrada que tinha estado desde 1926. Presidiria à mesma José Alberto dos Reis, ele também professor da Faculdade de Direito de Coimbra no domínio do processo civil.
Efectivamente, de acordo com o Decreto-Lei n.º 23 050, de 23 de Setembro de 1933, as profissões livres organizar-se-iam em regime de sindicato único sob a designação específica de “Ordens”, que assim manteriam.
Ora no caso específico da Ordem dos Advogados, e pois que inserida nesta estrutura, entenderia o diploma em referência, o Decreto-Lei n.º 24 904, visando-a expressamente, que «constitui elemento primário da organização corporativa», e ficaria, pois, sujeita àquele diploma legal n.º 23 050 «salvo no que se encontra especialmente regulado quanto à sua organização interna e à sua função técnica e profissional», pois aí mantinha a sua dependência do Ministério da Justiça e apenas no que se refere à sua «acção social, disciplina do trabalho, salários, organismos de assistência e previdência e relação com os demais organismos corporativos» é que teria ligação de dependência ao Sub-Secretariado de Estado das Corporações e Previdência Social através do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência.
Era uma tentativa de disciplinar uma entidade cuja autonomia escapava à lógica política do sistema.
Mas não apenas de colocação do órgão representativo dos Advogados se tratava. Lendo outros preceitos do famigerado diploma legal, captava-se o seu sentido já repressivo, de polícia e de controlo pela política governamental. Assim, segundo o artigo 3º do diploma legal em causa, a Ordem dos Advogados:
-» Subordinaria os interesses da sua categoria aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho;
-» Exerce a sua acção exclusivamente no plano nacional e com respeito absoluto pelos superiores interesses da Nação, sendo-lhe por isso vedada a filiação em quaisquer organismos de carácter internacional ou a representação em congressos ou manifestações internacionais sem autorização do Governo e não pode também, sem a referida autorização, contribuir monetariamente para a manutenção de organismos estrangeiros, nem receber deles quaisquer donativos ou empréstimos.
E, em remate, tornando claro ao que se vinha, proclama o artigo 4º do Decreto: «A Ordem dos Advogados constitui factor de cooperação activa com todos os outros factores da actividade nacional e repudia simultaneamente a luta de classes e o predomínio das plutocracias».
Para além disso, e na lógica de se tratar de um Sindicato, a eleição dos seus corpos directivos ficava dependente, como condição de validade, de homologação por parte do Sub-Secretário de Estado das Corporações e da Previdência Social, ingerência insuportável e atentatória da autonomia da Ordem.
Logo se faria ouvir, pronta e firme, a posição da Ordem. Convocados, em reunião urgente e conjunta, os Conselhos Superior e Disciplinar, Geral e os Distritais de Lisboa, Porto e Coimbra para o dia 14 de Janeiro, quatro dias após a publicação do diploma, foi nessa magna assembleia resolvido [xxiii], sob proposta de Domingos Pinto Coelho :

«1º Considerar o Decreto-Lei n.º 24 904 absolutamente inaceitável.


«2º Encarregar o Conselho Geral de continuar as diligências junto do Ministério da Justiça no sentido de evitar o ingresso da Ordem no regime corporativo.»

Repudiado pela classe dos advogados, o novo figurino viria a ser suspenso uns dias depois pelo Decreto n.º 25 037 de 12 de Fevereiro até à publicação das disposições reguladoras dos Sindicatos Nacionais com a natureza de “Ordens”.
Curioso, o facto legislativo: colocada, enquanto sindicato único, sob a alçada do corporativismo, por Decreto-Lei, e assim sob a assinatura de Oliveira Salazar, a Ordem dos Advogados, libertar-se-ia de tal dependência, por mero Decreto, firmado apenas pelo ministro da Justiça, Manuel Rodrigues.
Retirada ao sistema corporativo, a Ordem encontraria o seu local de referência nas definições do Estatuto Judiciário, que a situavam na égide do Ministério da Justiça.
Fazendo o balanço histórico do momento, Adelino da Palma Carlos – que seria, aliás, entre 1954 e 1973 Procurador à Câmara Corporativa, na secção da Justiça – diria, referindo-se precisamente ao papel da Ordem, a propósito da memória do Bastonário Barbosa de Magalhães [xxiv] :
«Neste embate, a Ordem triunfou, porque a sua razão foi reconhecida; e há-de sê-lo sempre, enquanto se mantiver intransigentemente, mas exclusivamente, na defesa dos princípios que a estruturam e orientam.»
Assim se viveu até à total libertação da Ordem de qualquer tutela governamental.
Ao comemorar, a 25 de Março de 1988, os 150 anos da Associação dos Advogados de Lisboa, génese histórica da Ordem, Augusto Lopes Cardoso, Bastonário, diria [xxv] que «o uso no Estatuto Judiciário do termo “corporação”, reportada à Ordem, mantinha todo o seu valimento depois da repulsão do corporativismo e sem ter que recear confusão com este. (…) Pelo que vem exposto é-nos lícito concluir, sem a mais pequena reserva, que, ao tempo da revolução de 1974, jamais a Ordem dos Advogados poderia ser taxada de organismo corporativo ou, similiter, de organização fascista, que a fizesse incorrer, em dissolução automática, como houve quem ousasse pretender».
Em 1984, sob a égide do Bastonário José Manuel Coelho Ribeiro, foi aprovado o novo Estatuto da Ordem dos Advogados pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março, em cujo artigo 1º, n.º 2 se proclamava, enfim: «A Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras.»


[i]Decreto n.º 11 715, de 12 de Julho de 1926.
[ii]António Abranches Ferrão, pai de Fernando Abranches Ferrão, foi ministro da Justiça de 7 de Dezembro de 1922 a 15 de Novembro de 1923.
[iii]Outros projectos são referidos pelo preâmbulo do diploma como o de Mesquita de Carvalho, de 1912 e Álvaro de Castro, de 1913.
[iv]Manuel Rodrigues, A Justiça no Estado Novo, Empresa Jurídica Editora, Lisboa, 1933, página 45.
[v]Beleza dos Santos,  O fundador da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 1, 4º trimestre, páginas 317 a 329. Paulo Dá Mesquita publicaria na colectânea Figuras do Judiciário, séculos XIX-XX, editado pela Almedina em 2014, o estudo Manuel Rodrigues Júnior e o perfil do processo penal português.
[vi]Citado A Justiça no Estado Novo.
[vii]Revista da Ordem dos Advogados, ano 18 (1958), áginas 357-360.
[viii]Salazar, D. Quixote, 2010.
[ix] Revista da Ordem dos Advogados, ano 60, volume 3 (Dezembro de 2 000), páginas 1473-1491.
[x]Decreto n.º 12 334, de 18 de Setembro de 1926.
[xi] A expressão, interessante, é de Alberto Luís.
[xii]O quadro está publicado no Diário do Governo, 2ª série, de 26 de Janeiro de 1927.
[xiii]A História da Ordem dos Advogados foi recentemente enriquecida com o início de publicação de dois volumes de uma obra intitulada Os Bastonários da Ordem dos Advogados Portugueses, o primeiro referente a 1926-1971 e o segundo a 1972-2004.
[xiv]Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1935, sem indicação de editor, página 12.
[xv] Marnoco e Sousa, Economia Nacional, 1909, páginas 150-154 e 168-172. Trata-se de algo que impropriamente se denominará de socialismo, doutrina assente na intervenção do Estado e na democracia e na equação entre a liberdade pessoal e a coesão e a solidariedade social.
[xvi]Ibidem, página 13,
[xvii]E que seria regulamentada pelo Decreto n.º 24 683, de 27 de Novembro de 1934.
[xviii]Posição actual do Corporativismo Português, Lisboa, 1950, sem indicação de editor, página 12.
[xix]Ibidem, página 13.
[xx]Ibidem, página 27.
[xxi] Manuel de Ciência Política e Direito Constitucional. Cito da 4ª edição, página 413.
[xxii]A Doutrina Corporativa em Portugal, Livraria Clássica Editora, 1936, página 128.
[xxiii]Alberto Sousa Lamy, A Ordem dos Advogados Portugueses – história, órgãos, funções, edição da Ordem dos Advogados, 1984, páginas 47-48.
[xxiv]Adelino da Palma Carlos, Elogio histórico do Dr. José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, proferido a 26 de Novembro de 1959, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 20 (1960).
[xxv]Da Associação dos Advogados de Lisboa à Ordem dos Advogados: subsídios históricos e doutrinais para o estudo da natureza jurídica da Ordem dos Advogados, Revista da Ordem dos Advogados, ano 48, n.º 1 (Abri, 1988), áginas 329-363. No mesmo sentido da impossibilidade de considerar a Ordem dos Advogados como organismo corporativo, a alegação subscrita pelo Advogado Honorário José de Azeredo Perdigão, publicada na Revista da Ordem dos Advogados, ano 3º, ns.º 3-4, páginas 186-190.
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