A honrosa oportunidade que me permitiu colaborar num livro, a publicar, proporcionou-me o ensejo de estudar o que chamei – de forma tendencialmente apelativa e por isso discutível – as ideias constitucionais derrotadas na Constituição de 1976.
Estudei os projectos que se perfilaram e seleccionei os pontos que me pareceram significativos mas que não passaram para o texto aprovado.
Esse deambular pela História, que sendo a da vida política, é também a do essencial da vida jurídica do País, mostrou-me a título pessoal como o tempo passa, não porque não sido deputado à Constituinte, mas, na altura, apenas cercado quando esta foi sitiada e nisso incluída a Residência Oficial do Primeiro-Ministros, o lendário Almirante Pinheiro de Azevedo com quem então trabalhava.
Volvido o tempo, tal viagem pela feitura de uma lei, a Lei das Leis, deu-me a confirmação – se necessária ela fosse, tanto visto e tanto sentido – do carácter relativo de todas as coisas, e como os absolutos de antes se tornam os precários de amanhã.
Uma vez que o Notícias ao Domingo! [do título faz parte o ponto de exclamação por nenhuma outra razão que não seja a minha…] se tornou num espaço de reflexão, aqui se oferece o mote do que pretende proporcioná-la, afinal a tese que o meu escrito tenta sustentar, através de uma sua fotografia, em retrato à la minute. Os coordenadores do livro sabem que isto é verdade: na 25ª hora libertei, esta manhã direi, o possível texto final, por não me ter possível almejar melhor.
Cito-me [com a devida vénia pela vaidade inerente]:
«Quem, com maior juventude ou menor preparação histórico-política, recordar hoje, mesmo com a usura do tempo a interpor-se, o artigo 1º da Constituição de 1976 vê o seu espírito ser vincado por perplexidade, ante quanto ali se escreve.
Lido a 2 de Abril de 1976, pelo secretário da mesa, o advogado António Arnaut, perante 195 dos 250 deputados eleitos à Constituinte, o texto da Lei Fundamental aprovada abria assim:
«Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes».
Se é verdade que a fórmula tentava o compromisso entre o um comprometido personalismo proposto pelo CDS e o substantivo colectivismo propugnado pelo PCP e pelo MDP/CDE, esquecido o radicalismo revolucionário patrocinado pela UDP, impressiona a menção a um dos conceitos fundamentais do marxismo, a «sociedade sem classes», a evidenciar que o compromisso alcançado no hemiciclo fora largamente favorável às forças sociais e políticas que haviam ocupado o espaço da revolução democrática inaugurara, tudo bem diferente do que faria prever o texto programático inicial proclamado pelo Movimento das Forças Armadas.
A fórmula só era parcialmente atenuada pelo artigo seguinte, quando fazia apelo ao conceito de «socialismo», ao invés do expectável «comunismo», a atingir através não de uma “revolução” mas sim de uma «transição», temperando tudo com a noção de que o poder das classes trabalhadoras seria «democrático» e não efectivado pela “ditadura do proletariado”, o que se alcançaria mediante a «criação de condições» para o efeito e não como “tomada imediata do poder”:
«A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo, mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras».
Eis, num hemiciclo presidido pelo Professor Henrique Teixeira Queiroz de Barros, o desigual ponto compromissório de um confronto político duro, materializado através do Direito, encerrado o ciclo revolucionário, conseguido, dentro dos limites do possível, através da inter-relação de projectos constitucionais oriundos dos partidos com assento parlamentar, os já referidos e mais o PS, o PPD e o CDS.
Houve derrotados nesse prélio jurídico-constitucional? Vendo os projectos apresentados, o texto final resultante, e as declarações políticas quanto ao sentido do voto, quase que se pode concluir que não, com uma excepção que, como soe dizer-se, confirma a regra.
Para usar uma analogia com a teoria dos jogos, não se tratou de um jogo de soma nula em que aos ganhos de uns correspondeu globalmente a perda de outros. Aqui todos perderam, todos ganharam porque algo ficou do que cada um tentou. E se este meu estudo não permite uma visão mais rigorosa, porquanto se cinge aos projectos iniciais, não reconstituindo quanto se passou a nível da discussão, nomeadamente na especialidade, certo é que os consensos difíceis que ali ocorreram acabaram por maximizar os contributos parciais para um texto comum que acabou por funcionar como um referencial histórico determinante do momento histórico que se vivia.»
(…)