Escolhemos três acórdãos vindos agora a lume, sobre temas sempre polémicos: a questão da indiciação suficiente, neste caso para a prolação da decisão instrutória, visto o modo como a mesma é aferida; a revogação da suspensão da pena, em face dos critérios da materialidade e da actualidade que emergem da revisão de 1995 do Código Penal; a matéria da tipicidade da reiteração no crime de violência doméstica e o problema sensível da prova do mesmo; e, por último, a problemática da autonomia do Ministério Público face a “ordens” judiciais visando a sanação de invalidades processuais. Sem desprimor para o que não vai referido, naturalmente mas se tempus fugit e depois de tempo, tempo virá.
-» Acórdão do TRP/indiciação para a pronúncia: o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.12.2016 [texto integral aqui, relator Manuel Soares] abordou, com larga fundamentação, a questão de como se alcançam os indícios suficientes para o efeito da pronúncia e o que se deve considerar indicação suficiente para a emissão de tal acto, e fê-lo consignando que:
«I – Com vista ao despacho de pronúncia a avaliação da prova, pelo juiz de instrução, é feita de forma indirecta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração e sem contraditório, tendo por base um texto escrito.
«II – A avaliação do seu valor probatório não conduz, por isso, ao mesmo grau de certeza que se adquire no julgamento.
«III – A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória da pronúncia, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição.
«IV – Existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação (teoria da probabilidade dominante).»
Para fundamentar a sua decisão, o aresto enuncia as três interpretações até agora surgidas do conceito de indícios suficientes e fá-lo pelo seguinte enunciado [suprimimos as notas de rodapé que podem encontrar-se no texto integral]:
«No artigo O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português[1], Jorge Silveira elencou três hipóteses possíveis de interpretação do conceito de “indícios suficientes” acolhido no código de processo penal vigente:
Na primeira hipótese, bastará uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento, para se considerar que existem indícios suficientes. Esta tese, que se pode designar por “teoria da probabilidade mínima”, encontra no artigo 311º nº 2 al. a) o seu principal ponto de apoio. Se a lei permite a rejeição da acusação manifestamente infundada, isso significa que toda a que não se possa qualificar como tal se deve considerar fundada em indícios suficientes. E assim, para pronunciar o arguido será necessário apenas que a sua submissão a julgamento não se anteveja como um acto manifestamente inútil ou infundado.
Esta interpretação da lei teve pouca expressão na jurisprudência. Para além das decisões referidas no estudo de Jorge Silveira – o acórdão do TRL, de 14MAR1990 (BMJ, nº 395, página 656) e sentença que deu origem ao acórdão do TC nº 439/02, de 23OUT2002[2] – na busca que fizemos não encontrámos quem a acolha.
Na segunda hipótese, será de considerar que existem indícios suficientes quando em julgamento seja maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. De acordo com esta interpretação, que se pode designar por “teoria da probabilidade predominante”, não basta que a condenação tenha um mínimo de probabilidade mas também não é necessário que essa probabilidade seja manifestamente superior à de absolvição. O que tem é de predominar a probabilidade de condenação sobre a probabilidade de condenação. A seguinte afirmação de Germano Marques da Silva sintetiza bem esta teoria: “probabilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa”[3].
Esta interpretação do conceito de indícios suficientes tem sido adoptada em várias decisões os tribunais superiores.
No acórdão do STJ, de 21MAI2008[4] e no acórdão do STJ de 8OUT2008[5] considerou-se que possibilidade razoável de condenação é uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
No acórdão do TRP, de 23NOV2011[6] escreveu-se que o juízo de prognose sobre a condenação implica que “se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado”. No entanto, no que parece ser uma aproximação à terceira corrente que adiante iremos referir, também se afirmou que o juízo indiciador em fase de instrução é “semelhante ao juízo condenatório a efectuar em fase de julgamento”. Esta equiparação ao juízo necessário para condenar em julgamento parece significar que a probabilidade de condenação tem de ser qualificada, dado que uma mera predominância de indícios de culpabilidade não é compatível com o grau de certeza necessário para a sentença condenatória, que tem de superar a existência de qualquer dúvida razoável.
Formulação igualmente dúbia é a que se encontra no acórdão do STJ de 16JUN2005[7]. Depois de afirmar que possibilidade razoável de condenação é uma “possibilidade mais positiva do que negativa” – formulação típica da “teoria da probabilidade dominante” – acrescenta que “os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Também na doutrina vemos formas de abordar o problema que não são muito claras. Figueiredo Dias escreveu que “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”[8]. Esta formulação alternativa denota hesitação entre a exigência de uma alta probabilidade ou apenas de uma maior probabilidade para a suficiência dos indícios.
Uma terceira hipótese de interpretação considera que os indícios suficientes exigem uma possibilidade particularmente forte de futura condenação. Esta “teoria da probabilidade qualificada” de alguma maneira equipara o prognóstico sobre a condenação no momento da acusação ou da pronúncia à convicção de veracidade em que se tem de fundar a condenação em julgamento. Parece ser essa a formulação de Luís Osório quando afirma que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fizerem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”[9].
A jurisprudência mais recente tem vindo a aderir a este critério.
No acórdão do TRE, de 16OUT2012[10], acolhendo expressamente a terceira teoria elencada por Jorge Silveira, considerou-se que “apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou probabilidade elevada de condenação (…) responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do estado de Direito democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo”; “O juízo ou convicção a estabelecer na fase de instrução, como no termo da fase de inquérito, há-de, pois, ser equivalente ao de julgamento, designadamente no que respeita à apreciação do material probatório e ao grau de convicção, que não se compadece com a ideia de verosimilhança ou de admissão da margem “razoável” de dúvida. A prova suficiente há-de corresponder à que “… em julgamento levaria à condenação, se aquele ocorresse com o quadro probatório, no tempo e nas circunstâncias que determinam o libelo acusatório“.
No acórdão do TRP, de 28OUT2015[11] entendeu-se que para serem suficientes os indícios têm de ser “particularmente qualificados permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento”.
Também no acórdão do TRC, de 9Mar2016[12], com referências a outras decisões do mesmo tribunal, se concluiu que “indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado (…) os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação (…). Na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final”.
Na base desta formulação mais exigente quanto à interpretação do vocábulo “possibilidade razoável de condenação” que nos dá a definição legal do que são indícios suficientes, estão preocupações relacionadas com os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Considera-se – como no acórdão do TC de 23OUT2002 atrás referido – que a presunção de inocência do arguido vigora ao longo de todo o processo e tem de conferir a titularidade de um estatuto efectivo e o direito a um tratamento favorável em todas as suas fases. E diz-se que um juízo de probabilidade de condenação menos exigente, que seja compatível com a subsistência de uma dúvida razoável sobre a culpabilidade, não respeita o princípio da valoração dos factos de veracidade duvidosa a favor da sua indemonstração.
Não terá assim sentido exigir no julgamento uma prova mais forte do que aquela que deve existir no momento da acusação ou da pronúncia. Se no encerramento dessas fases preparatórios do julgamento estão em princípio recolhidas todas as provas da acusação, só em casos excepcionais tais provas virão a ser reforçadas em momento posterior. Tendencialmente ocorrerá o contrário, pois a sujeição das provas ao contraditório da defesa, se algum resultado produzir será o de enfraquecer a força dos indícios anteriores. Ou seja, se a prova indiciária recolhida no inquérito e eventualmente completada na instrução não atingir a força necessária para que o juiz forme uma convicção muito segura de condenação, não tem sentido que o processo siga para julgamento pois não é nada provável que aí essa convicção seja alcançada. Como afirma Jorge Silveira, “uma dúvida razoável no final do inquérito dificilmente se dissipará durante a audiência de julgamento; pelo contrário, uma convicção que aponta para a condenação no final do inquérito pode facilmente, depois de sujeita a uma apreciação oral e contraditória na audiência, converter-se em dúvida razoável”.»
Seguidamente a esta exposição, o acórdão toma posição, enunciando a sua posição sobre o tema:
«Expostos os elementos essenciais das três possibilidades interpretativas, devemos agora tornar clara a nossa opção.
Afastamos claramente a primeira por ser incompatível com princípios constitucionais e por não lhe encontrarmos apoio na lei. O Tribunal Constitucional considerou que uma interpretação das normas que considere possível pronunciar um arguido relativamente ao qual baste concluir que o julgamento não resultará num acto manifestamente inútil, viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº 2 da Constituição. Por outro lado, a possibilidade de rejeição da acusação manifestamente infundada, prevista no artigo 311º, não constitui argumento relevante para dizer que há indícios suficientes quando não seja manifesta a sua inexistência, na medida em que actualmente está vedado ao juiz do julgamento apreciar no momento do recebimento da acusação a conformidade entre a prova indiciária e os factos imputados.
Acresce ainda que uma probabilidade mínima de condenação não se adequa à expressão utilizada na lei: “possibilidade razoável de condenação”. Se bastassem indícios mínimos a lei não exigiria que fossem suficientes nem os definiria a partir de um critério de razoabilidade. Nesse caso a lei não precisaria de exigir mais do que a existência de indícios.
Quanto à terceira possibilidade interpretativa, mais exigente na formulação do critério da suficiência dos indícios para viabilizar a submissão do arguido a julgamento, reconhecemos que se funda em argumentos ponderosos e difíceis de rebater. É impressiva a afirmação de que se existe uma dúvida razoável sobre a culpabilidade no momento da acusação ou da pronúncia, os indícios para submeter alguém a julgamento não são suficientes, pois não atingem o patamar da possibilidade razoável de condenação.
Julgamos, porém, que a “teoria da probabilidade dominante” não é incompatível com os princípios constitucionais da presunção de inocência e do in dubio pro reo e que existem boas razões para considerar que é essa a melhor interpretação da lei.
Em primeiro lugar, ainda que esse não seja o elemento decisivo, a letra da lei fornece pistas de interpretação que não devem ser contrariadas sem argumentos importantes. O julgador não pode extrair do texto um sentido que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Na nossa opinião, a hipótese interpretativa da “teoria da probabilidade qualificada” está demasiado arredada da letra da lei. Onde a lei refere “indícios”, lê-se “provas”, onde está “suficientes” vê-se “fortes” ou “consideravelmente elevados”, “possibilidade razoável” troca-se por “certeza isenta de dúvida”. E assim, a formulação legal literal “indícios suficientes são os que criam uma possibilidade razoável de condenação”, acaba por ser substituída pela alternativa “indícios suficientes são os que criam uma elevada possibilidade de condenação equivalente à certeza da culpabilidade, para além da dúvida razoável, resultante da prova em julgamento”. Ora, não nos parece possível à partida, conceber que o legislador se expressou de forma tão deficiente. Que não tivesse sido possível tornar mais claro no texto da lei um regime tão exigente como o que se pretende, se fosse essa a intenção legislativa.
Acresce que há outros momentos em que o texto da lei processual penal fornece pistas de interpretação dos conceitos em questão, que muito dificilmente suportam os pressupostos da “teoria da probabilidade dominante”.
No artigo 301º nº 1 é clara a diferença qualitativa entre o valor indiciário da prova em instrução e o valor da certeza exigido em julgamento. A lei ao estatuir que o juiz deve recusar diligências de prova que visem a demonstração da certeza do facto para além da possibilidade indiciária própria da fase instrutória, significa que para a formação da convicção sobre a culpabilidade no momento da pronúncia não se exige o mesmo grau de certeza e de isenção de dúvida que é necessária para o julgamento. O que mina as bases para afirmar que a submissão a julgamento não é compatível com uma indiciação dos factos com menor grau de probabilidade de veracidade do que a necessária para a condenação.
O artigo 391º-A nº 1 também nos fornece um subsídio de interpretação relevante. No julgamento em processo abreviado o critério dos indícios suficientes sofre uma alteração que não pode ser vista como inócua. Nestes casos, os indícios suficientes não se satisfazem com a existência de uma possibilidade razoável de condenação, mas têm de resultar de provas simples e evidentes. Aqui sim, parece que o legislador quis tornar o critério de submissão do arguido a julgamento mais exigente, pois a suficiência dos indícios já não se basta com a razoabilidade da hipotética condenação; é necessário ainda que tal hipótese esteja suportada por provas evidentes. O que se compreende em face das menores garantias dadas ao arguido numa forma de processo em que o inquérito é apenas sumário ou pode até ser substituído pelo auto de notícia. Face ao que o nº 3 do preceito considera como provas simples e evidentes, pode dizer-se que o arguido só é submetido a julgamento se o acervo provatório disponível apontar já para uma condenação com um grau de certeza reforçado, isento de dúvida relevante, como acontece na formação da convicção em julgamento.
E mais, no caso do julgamento em processo sumário, a lei nem sequer prevê um momento para avaliação da suficiência dos indícios da prática do crime, que é substituída apenas pela validação da detenção em flagrante delito e pelos factos constantes do auto de notícia, eventualmente completados por despacho do Ministério Público (artigos 381º nº 1 e 389º nºs 1 e 2). Também aqui é evidente que a submissão a julgamento não é de todo em todo precedida de uma avaliação da possibilidade de condenação equivalente à necessária para a condenação.
Por outro lado, o argumento-chave do referido estudo de Jorge Silveira, segundo o qual dificilmente uma prova dúbia recolhida em inquérito ou instrução se reforça e transforma numa certeza para além da dúvida razoável no julgamento, não está demonstrado. Essa é uma conclusão empírica que decorre de uma avaliação subjectiva sobre o que será normal acontecer à luz das regras legais, mas que a experiência nos tribunais está longe de demonstrar. É verdade que muitas acusações claudicam no julgamento e que exactamente com a mesma prova do inquérito os arguidos acabam por absolvidos. Nessas situações pode concluir-se que não existiam indícios suficientes para acusar. Mas também é verdade que chegam a julgamento muitas acusações baseadas em indícios mais ténues, que passam pelo crivo da instrução com base apenas num juízo de probabilidade dominante de culpabilidade, e que acabam em decisões condenatórias seguras e indubitáveis. O problema destes argumentos empíricos é que não permitem saber como terminariam em julgamento os casos das acusações que são inviabilizadas por falta de uma convicção segura sobre a condenação no momento da instrução.
A avaliação da prova pelo Ministério Público ou pelo juiz de instrução é normalmente feita de forma indirecta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração, sem contraditório. As declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas estão reproduzidos em textos escritos, as mais das vezes de forma sumária e em discurso indirecto. Não há um sistema de registo áudio ou vídeo que afaste por completo uma certa margem de interpretação do depoimento oral por parte de quem define os termos da sua transcrição para texto escrito. Outras vezes os depoimentos não são mais do que uma lacónica confirmação dos autos de notícia ou de depoimentos anteriores. As testemunhas quase nunca são postas em confronto umas com as outras. São raríssimas em inquérito as acareações ou reinquirições para sanar divergências ou esclarecer imprecisões. As testemunhas depõem em momentos diferentes numa esquadra de polícia ou numa sala do tribunal, sem qualquer tipo de solenidade, nem sempre perante os mesmos inquiridores e às vezes por agentes policiais ou oficiais de justiça que não têm preparação técnica nem experiência. Não podemos ignorar esta realidade e fazer de conta que ela não existe. É assim que se passam as coisas na esmagadora maioria dos inquéritos e é a essa realidade que temos de aplicar a lei e não a uma outra que podia ou devia existir.
Em julgamento a recolha e exame da prova processa-se de maneira diferente. O acto é público e solene. O juramento e a advertência das consequências do falso testemunho são formalidades que se expressam em palavras com mais significado. Os depoentes estão perante o juiz, o procurador e os advogados, olhos nos olhos. As declarações são orais e concentradas no mesmo acto, decorrem perante os mesmos interlocutores, que podem de forma imediata resolver dúvidas, sanar contradições, interagir de forma dinâmica com os depoentes. O juiz tem os depoentes todos presentes e pode chamá-los a esclarecer algum aspecto ou acareá-los para solucionar contradições. Pode chamar outras testemunhas ou produzir outras provas. Os depoimentos anteriores podem ser lidos. Podem exibir-se documentos. As mentiras podem ser desmascaradas na presença de quem as disse.
Tudo isso faz com que a probabilidade de descobrir a verdade do facto e decidir bem a causa seja muito maior no julgamento do que no momento de avaliação dos indícios em inquérito ou instrução. E isso é que dá sentido à regra do artigo 355º nº 1, que proíbe a valoração de provas não produzidas ou analisadas em audiência, e às limitações impostas pelos artigos 356º e 357º para a reprodução ou leitura de provas recolhidas nas fases anteriores.
A nosso ver, a forma como decorre a recolha de prova indiciária em inquérito ou instrução leva a que, por definição, a avaliação do seu valor probatório não conduza ao mesmo grau de certeza que se adquire no julgamento. E sendo assim, em consequência, tem de se aceitar como válida e conforme à lei a interpretação de que a convicção do juiz de instrução deve assentar numa probabilidade mais ténue do que a necessária para condenar.
O argumento de que o princípio constitucional da presunção de inocência impede que sejam submetidos a julgamento arguidos em relação aos quais os indícios apenas permitem concluir que existe uma probabilidade maior de serem condenados do que absolvidos não nos convence. Não porque consideremos que esse princípio constitucional não é aplicável no momento em que se avaliam esses indícios – já dissemos atrás que esse princípio é incompatível com a aceitação da “teoria da probabilidade mínima” – mas sim porque esse estatuto do arguido, que lhe confere o direito a presumir-se inocente, embora presente em todos os momentos do processo, tem um conteúdo normativo diferenciado em cada fase.
Talvez de forma demasiado imperfeita mas ainda assim operativa para o efeito que pretendemos, podemos definir a presunção de inocência como o conceito normativo que atribui a um facto desconhecido – a culpabilidade do arguido – um significado – a inocência – inferido a partir de um facto conhecido – a generalidade das pessoas não cometeu crimes – que pode ser infirmado se ocorrer um facto hipotético – a condenação definitiva.
O princípio com formulação semelhante à actual surgiu na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1798, na sequência da Revolução Francesa e por influência das ideias iluministas que vieram a dar origem ao que hoje entendemos por Estado de direito. No seu artigo 9º estabeleceu-se que “todo o acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”.
O mesmo princípio está hoje presente nas Convenções Internacionais de direitos humanos e fundamentais subscritas pelo Estado Português é parte.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, o artigo 11º nº 2 dispõe que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada”.
O artigo 14º nº 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da ONU dispõe que “toda a pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma a sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a sua culpa”.
Na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 6º estabelece que “qualquer pessoa acusada de uma infracção se presume inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
O artigo 48º nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia estabelece que “todo o arguido se presume inocente enquanto não tiver sido legalmente provada a sua culpa”.
Como vemos, à excepção do último documento referido, o princípio da presunção de inocência opera em primeira linha face a uma acusação ou à imputação de um crime. Isso tem a ver com as razões que estiveram na base da consagração do princípio, ligadas à necessidade de estabelecer regras contra a prisão de pessoas acusadas mas não condenadas, e também pela evidência de que do outro lado da presunção de inocência há-de estar uma qualquer imputação ou indício formalizado de culpabilidade.
A nossa Constituição, à semelhança do que veio a fazer a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, antecipa a concessão da situação de vantagem inerente à presunção de inocência para momento bem anterior à imputação formal de um crime. O artigo 32º nº 2 dispõe que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória”. É pois evidente o estatuto que confere os direitos inerentes à presunção de inocência se aplica a partir do momento da constituição como arguido (por uma das formas previstas no artigo 58º) e perdura por todas as fases do processo até à condenação com trânsito em julgado.
No entanto, pensamos ser evidente que os efeitos do direito ao tratamento favorável que resulta daquela presunção são variáveis em razão das fases do processo e do tipo de limitações de direitos e liberdades que em cada uma podem ocorrer. Certamente ninguém achará razoável afirmar que o efeito da presunção de inocência no momento em que o tribunal decide sobre a culpabilidade, que obriga à formulação de uma convicção certa e isenta de dúvida razoável, é o mesmo que deve estar presente quando se investe alguém na qualidade de arguido por existir suspeita fundada de ser autor de um crime (artigo 58º nº 1 al. a)), quando se sujeita um arguido a medidas de coacção, em que são necessários fundados indícios (artigos 174, nº 5 al. a)) ou fortes indícios da prática de um crime (artigos 200º, 201º, 202º e 203º) ou quando se decide imputar formalmente a prática do crime e submeter o arguido ao julgamento, com base em indícios suficientes (artigos 283º nº 1 e 308º nº 1).
O artigo 215º fornece-nos outros argumentos relevantes para afirmar que os efeitos favoráveis do princípio da presunção de inocência são graduais e se vão atenuando ao longo do processo, não obstante vigorar em todas as suas fases. Só o facto de se ir tornando cada vez mais provável a hipotética infirmação da presunção de inocência, à medida que que os elementos probatórios vão sendo sujeitos a apreciação e validação pelas sucessivas instâncias de controlo, é que permite justificar o progressivo alargamento da compressão do direito à liberdade antes da condenação definitiva, primeiro com a acusação e depois com a decisão instrutória, a condenação em primeira instância, a sua confirmação em recurso por decisão ainda não transitada e o recurso para o Tribunal Constitucional.
Este gradualismo dos efeitos da presunção de inocência, que nos parece evidente, afasta a objecção de que tal princípio constitucional obriga a que o grau de convicção sobre a culpabilidade do arguido tenha de ser equivalente nos momentos da pronúncia e da condenação. Pensamos que a submissão a julgamento com base numa possibilidade razoável de condenação, entendendo-se como tal uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição, afecta direitos mas não comprime de forma desproporcional e intolerável o princípio da presunção de inocência. Sem escamotar a afectação de direitos que resulta do simples facto de o arguido ser submetido a julgamento, não vemos como possa dizer-se que isso viola a presunção de que é inocente. É esse precisamente o momento processual em que se abre a fase de comprovação contraditória da acusação ou da pronúncia e se inicia a verificação da hipótese de culpabilidade que pode infirmar a presunção de inocência.
De resto, se fosse como se afirma na referida “teoria da probabilidade qualificada”, mal se compreenderia que o legislador tivesse eliminado a possibilidade de controlo judicial da suficiência dos indícios no momento do recebimento da acusação (artigo 311º). Quer dizer, se o legislador admite que o arguido seja submetido a julgamento com base numa acusação cuja suficiência dos indícios não foi sequer objecto de verificação por um juiz – sem que isso viole a presunção de inocência – não faria sentido, então, que, no caso de haver instrução, o respeito por tal presunção implicasse que a submissão a julgamento só devesse ser possível se o juiz de instrução se convencesse da possibilidade de condenação praticamente como mesmo grau de certeza exigível ao juiz do julgamento.
Por razões semelhantes pensamos que o princípio in dubio pro reo não constitui argumento decisivo para a defesa da “teoria da probabilidade qualificada”. Esta regra, segundo a qual na dúvida se deve decidir a favor do arguido, não é um critério de valoração da culpabilidade mas sim de valoração da prova incriminatória. O princípio in dubio pro reo define um critério regulador para a formação da convicção do tribunal de considerar provado um facto desfavorável ao arguido, ao passo que a presunção de inocência significa que só há crime com factos provados suficientes e definitivos.
Suficiência do indício e prova do facto não são a mesma coisa. Um indício é um princípio de demonstração de veracidade, um começo de prova, um sinal de que o facto pode vir a provar-se como verdadeiro se submetido ao julgamento contraditório. Mas os indícios só por si são irrelevantes para levar alguém a julgamento. É necessário que o princípio de prova que deles resulte seja de tal forma importante que preencha o critério da possibilidade razoável de condenação. Contudo, estamos ainda no patamar de probabilidade de um resultado futuro, que será a prova do facto, através da demonstração certa, plena, segura, total, fora de dúvida relevante da sua veracidade.
Por isso cremos que não se deve convocar o princípio in dubio pro reo como critério de avaliação da suficiência dos indícios para julgamento. Um indício é por definição duvidoso e como tal, se lhe aplicarmos aquele critério no momento da acusação ou da pronúncia, não vemos como alguém possa ser levado a julgamento.
Do que temos vindo a referir resulta já evidente que, na nossa perspectiva, a avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória de pronúncia, à luz do critério legal da existência de uma possibilidade razoável de condenação, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Essa avaliação deve ponderar todas as variáveis de forma integrada.
Há prova indiciária que é produzida validamente em inquérito mas que não pode ser examinada no julgamento. Sucede isso, por exemplo, com declarações auto-incriminatórias do arguido às autoridades policiais. Sendo assim, parece claro que o juiz de instrução não poderá tomar em conta esse indício quando avalia a possibilidade razoável de condenação em julgamento, na medida em que a sua reprodução perante o juiz do julgamento é proibida. No entanto, este elemento aumenta a previsibilidade de uma admissão de culpa em julgamento por parte do arguido.
Há também prova produzida em inquérito que pode ou não vir a ser examinada em julgamento. Referimo-nos aos documentos e depoimentos cuja leitura em audiência está condicionada (artigos 356º e 357º). Aqui, a avaliação que o juiz de instrução é chamado a fazer, com base num critério de razoabilidade, que contém também uma avaliação de previsibilidade, não obriga necessariamente a excluir esses indícios, pois os mesmos em certas condições podem vir a constitui-se como meios de prova no julgamento.
Há ainda indícios em inquérito que podem modificar-se no julgamento. Isso acontece com as declarações do arguido, que não é obrigado a prestá-las nem sequer a manter as que prestou anteriormente. Ao avaliar se os indícios são suficientes, o juiz não pode deixar de considerar a posição tomada pelo arguido no inquérito nem de admitir a possibilidade de se alterar em julgamento.
Do mesmo modo há provas que só em julgamento podem produzir-se. Só na audiência é que o arguido pode fazer uma confissão integral dos factos à qual pode se atribuído valor probatório pleno. Também isso deve relevar na avaliação dos indícios pelo juiz de instrução, na medida em que uma admissão integral de culpa em inquérito ou instrução, mesmo que perante o Magistrado do Ministério Público ou Juiz e sob a advertência legal de que pode vir a ser examinada em audiência, pode vir a ter um valor probatório acrescido ou diminuído em julgamento.
Por fim, como dissemos já, há sempre a possibilidade do juiz, oficiosamente ou a requerimento, produzir novas provas em julgamento (artigo 340º). É claro que na fase de instrução em princípio o juiz não configurará essa possibilidade, porque se o fizesse, se entendesse que havia prova relevante em falta, deveria determinar logo que a diligência se realizasse. Mas também não pode excluir que com a dinâmica da prova surjam informações supervenientes que venham a determinar aquela possibilidade.
O que pretendemos realçar com as referências antecedentes é que em grande medida o desfecho do julgamento final é imprevisível no momento da avaliação da suficiência dos indícios em instrução. E assim, se o resultado da prova é imprevisível, então por definição o juiz de instrução não tem na fase prévia bases que lhe permitam formular um prognóstico de possibilidade sobre a culpabilidade superior ao razoável. O critério da razoabilidade impõe que o juiz chegue a uma conclusão sobre a possibilidade de condenação, não em função de uma avaliação estática dos elementos indiciários disponíveis nesse instante, mas sim a partir de uma previsão prudente e baseada na experiência sobre a sua evolução dinâmica até ao julgamento.
Razoável é aquilo que se adequa à razão, aos ditames da lógica e da racionalidade e ao bom senso; aquilo que é justo e proporcional. Logo, quando o juiz de instrução verifica se tem diante de si indícios que lhe dizem haver uma possibilidade razoável de vir a provar-se com certeza que o arguido praticou o crime, não pode deixar de fazer apelo a todos os elementos de ponderação que lhe permitam chegar a uma decisão dotada de razoabilidade e que possa ser fundada em factores objectiváveis. Se olharmos para o artigo 298º vemos que nesse momento o juiz pondera se tem elementos suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento (sublinhado nosso). Ou seja, perante os interesses em confronto – de um lado os direitos do arguido e a presunção de que até à decisão final é inocente; do outro a necessidade de assegurar a realização da justiça e a protecção dos valores com tutela penal – o juiz tem também de formular um juízo balanceado sobre a proporcionalidade na compressão de uns em desfavor de outros.»
E, assim, se alcança a respectiva conclusão:
«Para concluir, diremos então que o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal.
Definida a nossa interpretação de que existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação, estamos em condições agora de avançar para a aplicação do nosso critério ao caso em apreço.»
-» Acórdão do TRE/revogação da suspensão da execução da pena: o Acórdão da Relação de Évora de 15.12.2016 [texto integral aqui, relator António João Latas] lembrou o critério de revogação da suspensão da pena após a reforma do Código Penal de 1985 e os princípios da materialidade e da actualidade que o deve orientar, tendo determinado:
«I – Após a reforma do C. Penal de 1995, a revogação da suspensão da pena pelo cometimento de um novo crime no período da suspensão, passou a depender de um pressuposto material, traduzido na revelação de que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, nem podem mais ser alcançadas.
«II – O referido pressuposto material e passa a constituir a questão nevrálgica a decidir nos casos de cometimento de novo crime, cabendo maior responsabilidade ao intérprete e aplicador da lei na determinação dos casos de revogação, pois a decisão respetiva centra-se agora no especial impacto do novo crime na prossecução das finalidades que estavam na base da suspensão e não na natureza dolosa ou culposa do crime ou na espécie da pena aplicada.
«III – Vigorando em toda esta matéria o princípio da atualidade, de acordo com o qual a decisão deve ter em conta a situação verificada no momento em que é proferida, o prognóstico de que era ainda possível a reinserção do arguido em liberdade, em que assentou a decisão de suspensão da pena, não fica irremediavelmente comprometido com a prática de novo crime no período da suspensão se, avaliando a relação entre a condenação pelo novo crime e a anterior, a aplicação de pena não privativa da liberdade pelo novo crime, o cumprimento da condição imposta à suspensão da pena em apreciação, a integração familiar do arguido, o cumprimento total ou parcial da pena não privativa da liberdade aplicada pelo novo crime e o lapso de tempo decorrido desde a prática dos crimes, o tribunal puder concluir ser ainda possível a reintegração do arguido em liberdade.»
Eis o excerto relevante da fundamentação do aresto:
«Apesar de não implicar a revogação automática da suspensão da pena, como sucedia na vigência do C.Penal de 1886 e da versão originária do C.Penal de 1982, a prática de novo crime pelo arguido no período de suspensão continua a ser autonomamente prevista como causa de revogação, sempre que tal revele que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, ou seja, na expressão do Prof F. Dias (Consequências jurídicas do Crime-1993, pp 356-7), se do concreto cometimento de novos crimes nascer a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, ou seja, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade. Dito de outro modo, haverá lugar à revogação se o cometimento de novo crime levar a concluir que estão esgotadas as possibilidades de socialização do arguido em liberdade.
Ainda no plano da interpretação da lei, entendemos que o art. 56º do C.Penal não distingue, deliberadamente, entre a condenação do arguido em nova pena de prisão e em pena não privativa de liberdade, fruto da evolução legislativa registada desde a versão originária do art. 51º do C.Penal de 1982, que impunha, ope legis, a revogação da suspensão no caso de condenação por crime doloso em pena de prisão, enquanto o art. 50º al, c) previa que a prática de crime culposo ou doloso punido com pena não privativa de liberdade tivesse ope judicis a mesma consequência.
Na versão atual, introduzida pelo Dec-lei 48/95 de 15 de Março, a revogação da suspensão da pena pode ter agora lugar mesmo que o arguido não tenha sido condenado em pena privativa da liberdade, como sucedeu no caso presente, desde que se mostre preenchido o referido pressuposto material.
Este passa a constituir o ponto nevrálgico nos casos de cometimento de novo crime, cabendo maior responsabilidade ao intérprete e aplicador da lei na determinação dos casos de revogação, pois a questão centra-se agora no especial impacto do novo crime na prossecução das finalidades que estavam na base da suspensão e não na natureza dolosa ou culposa do crime ou na espécie da pena aplicada.
No caso sub judice não se discute a verificação do apontado pressuposto formal e a mesma não está em causa, pois o arguido foi condenado por dois crimes praticados no período de 2 anos de suspensão contado do trânsito em julgado da sentença condenatória, pelo que a questão central é, pois, a de saber se também se mostra preenchido o pressuposto material acolhido na al. b) do nº1 do art. 56º, ou seja, se aquelas condenações revelam que as finalidades que estavam na base da suspensão não podem mais ser alcançadas, tendo presente que vigora em toda esta matéria o princípio da atualidade, de acordo com o qual a decisão deve ter em conta a situação verificada no momento em que é proferida.
A este respeito, importa enfatizar que a evolução do regime legal da revogação da suspensão a que fizemos referência, dita – contrariamente ao que foi considerado no período inicial de vigência do C.Penal de 1982 – que o prognóstico de que era ainda possível a reinserção do arguido em liberdade, em que assentou a decisão de suspensão da pena, não fica irremediavelmente comprometido com a prática de novo crime no período da suspensão, mesmo tratando-se de crime doloso punido com pena de prisão não substituída.
Daí que o regime legal saído da reforma de 1995 imponha que o tribunal avalie em todos os casos a relação entre a condenação pelo novo crime e a anterior, mas também que aprecie a situação pessoal do arguido, de modo a poder concluir se no momento da decisão de revogação ainda será possível a reintegração do arguido em liberdade, de acordo com o princípio da atualidade, cuja importância na fase de execução das penas deriva do peso decisivo que as finalidades de prevenção especial positiva ou de integração assumem nessa mesma fase, ainda que a esta fase não sejam alheias finalidades de prevenção geral.
Assim, o tribunal deve atender à afinidade ou heterogeneidade entre ambos os tipos de crime, mas também à forma como a prática dos mesmos se adequa à personalidade do arguido e às suas condições de vida, de modo a poder concluir se a prática do crime durante o período de suspensão da pena se enquadra num quadro vivencial que não permite nova prognose positiva sobre ressocialização do arguido em liberdade.
Isto é, as implicações da nova condenação na subsistência ou revogação da suspensão da pena dependem não só da natureza e medida da nova pena mas também do comportamento do arguido, nos seus diversos aspetos, após a suspensão da pena, incluindo eventuais vicissitudes relativas ao cumprimento desta.
A esta luz, releva terem sido aplicadas penas não privativa da liberdade (PTFC) em substituição da prisão inicialmente determinada pela prática dos novos crimes, ter o arguido cumprido a condição de suspensão da execução da pena que lhe foi imposta, ter, ainda, cumprindo integralmente a PTFC aplicada por uma delas e cumprir atualmente a outra, e, encontrando-se o arguido inserido familiarmente, não haver notícia de outros ilícitos típicos apesar de terem decorrido mais de 4 anos sobre a data do último crime praticado.
Ou seja, apesar de a prática dos novos crimes comprometerem a prossecução em liberdade das finalidades preventivas que estiveram na base da decisão de suspender a execução da prisão nos presentes autos, à data em que foi proferido o despacho recorrido não pode concluir-se que se mostra definitivamente frustrado o propósito de reintegração do arguido em liberdade que ditou a suspensão da execução da pena de prisão, pelo que o recurso procede quanto à pretendida revogação do despacho recorrido.»
-» Acórdão do TRC/violência doméstica/aferição da prova em recurso: o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.12.2016 [relator Vasques Osório, texto integral aqui] estatuindo sobre os requisitos típicos do crime de violência doméstica e sobre a delicada questão da prova respectiva sentenciou:
«I – O crime em questão [violência doméstica] tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana, por isso, a acção típica, prevista no nº 1 do artigo citado – a inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos –, requer que a conduta seja realmente maltratante isto é, que através dos maus tratos o agente degrade a dignidade da vítima enquanto ser humano.
«II – A lei prevê uma conduta maltratante resultante de uma prática de actos reiterados, que podem traduzir-se, v.g., em ofensas à integridade física, em ofensas à integridade psíquica, em ofensas à liberdade e em ofensas sexuais, que afectem a dignidade da pessoa humana, em concreto, a dignidade da vítima, mas admite que uma única acção, porque atingiu uma intensidade tal, possa, em si mesma, isoladamente – portanto, sem que haja conduta reiterada – afectar aquela dignidade e, em consequência, preencher o tipo (cfr. Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 519 e Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 308).
«III – O tipo objectivo integra as condutas de violência física – crime de ofensa à integridade física –, violência psíquica – crimes de ameaça, coacção, injúria, difamação – e ainda as tipificadas privações de liberdade e ofensas sexuais.
«IV – Mas estas condutas só serão típicas quando traduzam acções efectivamente maltratantes, quando a acção ou as acções concretas, pela sua ofensividade, conduzem à degradação da dignidade da pessoa da vítima.
«V – Na operação de valoração da prova, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal e, dele resulta que a apreciação da prova é tarefa da esfera exclusiva do juiz mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de a poder valorar movido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional.
«VI – A valoração da prova impõe ao juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos depoentes, tendo, em qualquer caso, como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.
«VII – A prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, v.g., das declarações da assistente ou do depoimento de uma testemunha. O que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade.»
Abordando a questão da tipicidade do requisito da reiteração, o acórdão considerou:
«Embora a reiteração não seja, como acabamos de ver, elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo, ela é, no entanto, pressuposta pela lei, como conduta ‘norma’. Daí que a violência doméstica seja qualificada como crime habitual isto é, como um crime cuja acção é praticada de forma reiterada.
Como tal, todas as condutas parcelares que compõem o todo ‘violência doméstica’ devem constar da acusação, devidamente individualizadas e concretizadas. Porém, neste aspecto, o C. Processo Penal não faz exigências desrazoáveis, antes revela alguma flexibilidade, ao exigir que a narração do factos contenha, quando possível e portanto, quando conhecidos – o que significa que não é uma exigência absoluta –, o ubi, o cur e o quando do crime imputado.
Estamos de acordo em que uma imputação genérica ou seja, a narração de um conjunto fáctico a que falta, em absoluto, a concretização no tempo, no espaço, na motivação e no grau de participação do agente, não pode suportar uma condenação sob pena da postergação do direito de defesa, na medida em que não é susceptível de ser contraditada.
Mas tendo presente que o conceito de reiteração deve conduzir a um estado de agressão permanente [o que não significa que as agressões tenham que ser constantes] que permita concluir pela existência de uma relação de domínio do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar, deixando esta aniquilada e sem defesa e portanto, numa situação humanamente degradante, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado se, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação (cfr. Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 306 e 307).»
E quanto ao diferente critério como a prova deve ser aferida na primeira instância e na de recurso, é interessante esta passagem do decidido:
«Acontece que na operação de valoração da prova, vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal. Dele resulta que a apreciação da prova é tarefa da esfera exclusiva do juiz mas a livre convicção que a fundamenta não tem o sentido de a poder valorar movido por um convencimento exclusivamente subjectivo, pois ela não significa arbítrio ou decisão irracional. A valoração da prova impõe ao juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos depoentes, tendo, em qualquer caso, como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo. A convicção do tribunal será o resultado da conjugação dos dados objectivos contidos em documentos e outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, a coerência do seu raciocínio, entre outros. Esta conjugação só pode ser obtida, pelo menos, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova, pois só o contacto directo entre esta e o julgador o coloca nas condições ideais para proceder, primeiro, à avaliação individual e depois, à avaliação global, da prova.
Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, na fase do recurso não pode ignorar-se a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada pela 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal ad quem, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, que eventualmente considere relevantes, o que determina a impossibilidade de apreender parte substancial dos elementos atrás enunciados, por serem insusceptíveis de registo audio, elementos que, contudo, foram, ou podiam ter sido, apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou, pelo juiz do julgamento.
Por esta razão, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deve censurar, se for feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. E tanto é assim que o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exige a especificação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, ficando claro que para o legislador, a modificabilidade da decisão de facto não se basta com a indicação de provas que apenas permitam uma decisão diversa da recorrida, pois só é admissível quando as provas especificadas pelo recorrente excluem a decisão de facto proferida, impondo uma outra. Por isso que «o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados» (Ac. do STJ de 19 de Maio de 2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1, in www.dgsi.pt).»
-» Acórdão do TRG/autonomia do MP/”ordens” de juiz: o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.12.2016 [relatora Paula Roberto, texto integral aqui] entendeu que:
«I) O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele.
«II) Daí que por falta de fundamento legal, não pode o juiz determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para sanação de irregularidade concretizada numa notificação ao arguido de uma incorrecta identificação do defensor que lhe foi nomeado.»
Eis o passo em que o aresto explicita, acompanhando jurisprudência corrente, a razão do decidido:
«O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele.
Face àquela autonomia, <<não tem fundamento legal qualquer “ordem”, nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” – (cfr. acórdão do STJ de 27/04/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque Comentário do CPP, 4.ª edição, 2011, Universidade Católica Editora, págs. 816 e 817., “contudo, pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao MP (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito (…)”.
Em suma, <<o Juiz (de instrução ou de julgamento) não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido, visto que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público>> – acórdão da RL, de 26/02/2013, disponível em www.dgsi.pt.
No mesmo sentido, cfr. os acórdãos da RC, de 23/10/2013; da RL, de 21/11/2013; da RP, de 04/06/2014 e da RG, de 11/01/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.»