O tema da semana foi, na área penal, a publicação no Diáirio da República do Acórdão n.º 1/2016, do STJ, de 12 de Novembro [vê-lo aqui e já antes aqui] fixando jurisprudência quanto à perda de eficácia da prova por adiamento de audiência para além do prazo de trinta dias previsto na lei, tal como o prevê o artigo 328º do Código de Processo Penal.
Tratou-se, diga-se, de uma forma jurisprudencial de remediar uma falta de previsão da lei numa matéria que carecia de norma, de uma jurisprudência criativa ante uma necessidade que o legislador não supriu.
Estive na Comissão, presidida pelo Professor Figueiredo Dias, de que saiu o Código de Processo Penal em vigor. E recordo a preocupação que houve em dar execução ao comando do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Homem no sentido de que os processos na área criminal tivessem a duração de um prazo razoável e não se arrastassem indefinidamente e., no que às audiências respeita, elas fossem orientadas por um princípio de continuidade [e concentração], segundo o qual, e numa fórmula para leigos, começassem para acabar sem hiatos, suspensões ou interrupções salvo o necessário e inevitável. [sou do tempo em que ainda havia julgamentos à noite na Boa-Hora para terminar audiências que de outro modo passariam para outro dia].
Um dos factores que foi tido em conta no estabelecimento das normas respectivas foi a circunstância de não haver memória humana que resista a intervalos entre audiências demasiadamente extensos, considerando-se que trinta dias era adequado pois, para além disso, já os sujeitos processuais poderiam começar a fazer confusões entre a prova produzida na sessão antecedente da audiência que estivesse em causa.
Foi com base nesta lógica que se redigiu o artigo 328º do Código de Processo Penal, o que está aqui em causa.
De modo a dotar o sistema de garantia de cumprimento – lamentável que as normas sem sanção, porque tidas por meramente ordenadoras, sejam incumpridas, como as do prazo máximo de inquérito – estabeleceu-se que, no caso de o intervalo entre as sessões de audiência ultrapassarem os trinta dias, perdia eficácia a prova produzida até aí.
E nasceu aí o problema que tem vindo a incidir sobre o preceito: por um lado, aqueles que entendiam que ele era incompatível com o normal funcionamento dos tribunais, que não tinham agenda que resistisse a adiamentos aquém de trinta dias; por outro, os que lembravam que havia casos em que, aguardando-se, em fase de audiência, pelo cumprimento de diligências demoradas – uma informação, um exame, uma precatória ou rogatória – ou interpondo-se férias, para evitar o risco de se perder a prova, as audiências teriam de abrir em regime de mero “pro forma”.
Convivemos todos com o caricato sistema de reabaerturas de audiência em que, no dizer irónico de alguém, «o juiz perguntava que horas eram ao arguido», de tal modo tudo se passava a fingir, expediente desprestigiante para a justiça; e todos vivemos com aqueles momentos, de agonia ou alegria – conforme os interesses – em que se temia que o arguido faltasse e não houvesse material humano para esse jogo de “faz de conta” orientado a que não prova não fenecesse
Era esta a redacção primitiva do texto do artigo que a tudo deu causa: « O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.»
Sistema demasiado drástico, comentaram alguns, quando o novo regime foi conhecido; sistema inviável, alegaram outros; sistema que teria de ter excepções pensaram quase todos.
Claro que já na altura, se teve em linha de conta que. doaravante, prevalecendo-se dos modernos meios tecnológicos, a prova em audiência seria gravada – prevendo-se até que o pudesse ser em vídeo – e por isso andou pela mente dos legisladores – e depois de alguma jurisprudência – que, uma vez que os intervenientes se poderiam socorrer das gravações, para refrescarem a memória, sempre se poderia abrir excepção à caducidade ao trigésimo dia; e dúvida surgiu quanto a saber se o sistema se aplicava também quando o intervalo surgisse entre o último dia de produção da prova e o dia em que a sentença fosse lida, após ter sido escrita e algumas eram imensamente extensas, sendo que sobre isso, aquilo que na Comissão se esperava e aquele que se viveu na prática dos tribunais houve um mundo de diferença: é que se há momento em que importa que a memória tudo recorde é esse, aquele em que se toma a decisão sobre toda a prova.
Mas há sobretudo algo que não poderia ser esquecido: a continuidade da audiência estava indissociavelmente ligada à sua concentração, pois que um julgamento que, semeado de intervalos extensos, sendo demasiado longo gera o indesejável mas expectável efeito de no último dia já haver só reminiscência de como começou. A sermos honestos com a realidade e excepcionando as “memória de elefante”, que as há.
Mau grado a Justiça ter de enfrentar estas vicissitudes, a norma ficou sem modificações, mau grado as três alterações legislativas que incidiram sobre o preceito. E para além daquelas questões outras foram surgindo, mormente quanto à repetição das audiências por outros motivos. Tudo a exigir revisão global do sistema e ela a tardar.
A tentativa de adequação, essa, só surgiu com a Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, após a qual ficou assim:
«6 – O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita.
«7 – Para efeitos da contagem do prazo referido no número anterior, não é considerado o período das férias judiciais, nem o período em que, por motivo estranho ao tribunal, os autos aguardem a realização de diligências de prova, a prolação de sentença ou que, em via de recurso, o julgamento seja anulado parcialmente, nomeadamente para repetição da prova ou produção de prova suplementar.»
Como todas as reformas, mesmo as efectivadas com participação dos que têm, pela natureza das suas funções, de conviver com a vida prática, fica sempre algo por prever.
E eis onde incidiu precisamente o Acórdão que cito, o qual vem resolver um problema que subsistia irresoluto, fazendo-o pela seguinte forma: «O prazo de 30 dias previsto no art 328.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, é inaplicável nas fases processuais em que, após a deliberação do tribunal sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, seguida ao encerramento da fase de discussão, seja verificada a necessidade de repetição de prova registada no decurso dessa anterior fase de discussão por haver deficiência no registo efectuado mantendo-se, portanto, a eficácia da prova.»
Era o que acontecia não poucas vezes, nomeadamente quando o tribunal de recurso, apercebendo-se da deficiência da gravação, ordenava a repetição de uma dada sessão de julgamento para que a prova fosse “repetida” – na verdade, afinal, de uma nova prova se tratava, tantas vezes diversa da anteriormente obtida.
Enfim, temos lei, através da interpretação jurisprudencial. Lei prática, dentro da lógica do sistema. Que nesse altura, em que se repete a prova, os participantes na audiência ainda se lembrem do que ocorreu antes, fica por demonstrar. Que se socorram de apontamentos fidedignos ou ouçam as gravações para colmatar lapsos de memória, eis o que só a consciência profissional de cada um ditará. Uma coisa ficou: a prova agora não se perderá quando a gravação se perdeu, ainda que surja uma outra prova a fazer de conta que é a mesma. A eficácia triunfou. E essa, ao menos, haveria que não fazer perder.
Haveria alternativa para desatar este nó górdio? Eis o tema para reflexão. Como diz a sabedoria chinesa nem tudo o que é desejável é possível.
+
Imagem: Jeff Wall, Untangling, 1994