O acto de legislar, sobretudo no domínio repressivo e no âmbito deste na esfera penal, arrasta consigo questões de substância, de forma e de adesão: trata-se, em primeiro lugar, de determinar num sector da vida que exija a edição de uma norma, depois, de saber redigi-la em termos de rigor na fórmula, delimitação do âmbito e compreensão pelos destinatários, enfim, concitar em seu torno a apoio da sociedade ou pelo menos de sectores da mesma que se pautem pelos princípios basilares do Direito.
Se o primeiro vector implica que se não convoque o Direito Penal sem necessidade, o segundo supõe que o mesmo surja sem ambiguidade, o terceiro que a lei apareça com oportunidade. Assim se torna provável que uma lei ganhe autoridade.
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Vem isto a propósito da legislação penal dita sobre o “piropo”, que está sujeita à chacota pública, mesmo em meios não masculinos; a qual, provém, diga-se, frequentemente de quem a não leu e, convocado a pronunciar-se sobre o seu conteúdo, é incapaz de a reproduzir, mas dita, no entanto, opinião
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Por isso há, em primeiro lugar, que ler a letra da lei para que não se corra o risco de falar do que não se sabe, pecha típica de muitos dos nossos concidadãos, até dos que têm responsabilidades públicas ou profissionais mas que não se coíbem de se arvorarem em comentadores de serviço, não os desanimando a ignorância ante o assunto.
Tudo gira em torno do artigo 170º do Código Penal, em função da alteração [a trigésima oitava] que lhe foi dada pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto [ver aqui], o qual por passou a estar redigido com o acrescento do inciso «formulando propostas de teor sexual».
Citando a norma na sua integralidade, ei-la com a redacção em vigor: «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexuall ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» [o sublinhado contém o que se aditou e está agora em causa}.
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Posto isto, e sem qualquer consideração especial de cunho jurídico, desde logo se nota, antes de mais, que não se trata de legislação para proteger apenas as mulheres mas sim seres humanos, independentemente do sexo, se bem que se possa argumentar que a maioria dos pressupostos “suspeitos” sejam, por razões históricas ou sociológicas, homens. Quod erat demonstrandum, porém, nos tempos correntes e correndo as variantes em que o género e o trans-género se subdivide.
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Além disso, verifica-se que estão fora de questão quaisquer ditos, apartes ou verbalizações, ainda que expressas e audíveis, de valoração ou derrogação de outrem no plano que na sexualidade se reveja, pois o que a lei exige é que se trate de «propostas», algo que signifique unilateralidade, por um lado, e no campo sexual por outro, na expectativa, pois, de uma eventual de aceitação, formuladas, no entanto, de forma a «importunar», [E antecipo que ao usar o termo «propostas» o legislador, nolens volens acabou por restringir o domínio de acção da norma porquanto quem propõe espera aceitação o que deixa desguarnecidas de tutela situações em que o afirmado o é a título gratuito e sem qualquer propósito de obter eco ou efeito].
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Posta a questão nestes termos, delimitado o teor do que está em causa, ganha compreensão o que poderia ter sido a intenção legislativa quando pretenderia, por um lado, defender a dignidade do ser humano – não o colocando como mero objecto de propostas que não pretenda receber – vindas de quem possam vir ou formuladas pela forma como possam surgir – e por outro tutelar a liberdade sexual, pela qual o relacionamento com este perfil – ainda que não directamente ao nível do acto mas, muito antes, no quadro do próprio envolvimento, tem de exigir uma mútua liberdade sem a sobrecarga que o importunar afinal significa.
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Ora é aqui que a lei abriu o flanco, expondo-se ao que assistimos como manifestações de apoucamento em seu redor: é que, se num registo aceitável, os actos de sedução, o “flirt”, o “galanteio”, tudo quanto esteja no quadro do que se considere o “namoro” – e todas estas expressões, por não jurídicas que sejam, salvo a primeira, creio que explicitam o que pretendo – não podem porque não devem ser criminalizáveis, nem sequer actos ilegítimos, pois fazem parte de um trato social em que a liberdade dos envolvidos não é posta em causa, a consciência erógena a situação é assimilada e a dignidade pública é mantida, tudo no quadro de uma proporção de razoabilidade, aqui a fórmula legal, ao ficar-se pelo conceito proposta sexual importuna, se não quis invadir aquele território, pareceu querer fazê-lo, abrindo a porta à ideia de que o desejava sob a alçada penal,
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É certo ao utilizar o conceito aberto – e por isso indeterminado – de «importunar», o legislador abriu a porta a interpretações que não favorecem a explicitação do que está em causa, porque a palavra se abrange o “molestar”, o “agredir”, também inclui o simples “maçar” e o “aborrecer”, estas zonas aquém do que se se supõe expectável no domínio do criminalizável.
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E por outro lado, fica, afinal, por proteger nesta norma o que só no quadro da injúria ou da difamação pode encontrar defesa: a manifestação de juízos valorativos que atinjam a honra ou a consideração social, no primeiro caso dirigidos ao próprio, no segundo ante terceiros.
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Em suma, aquilo perante o que estamos é de uma indevida equiparação pública do “piropo” a propostas sexuais importunas e foi isto e não aquilo que o legislador pode ter querido. Entre um mundo e outro vai uma diferença, quer no campo das realidades da vida, quer naquele outro em que surge o Direito Criminal a intervir. Assim quem tiver de aplicar o novo preceito saiba usar de critérios de prudência, gerando rigor em face de uma situação que, como se viu, na opinião pública, está a ser tratada com soez displicência.
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É que, em matéria de critério de apreciação da liberdade sexual, todos temos bem presentes este excerto de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Outubro de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 390, de Novembro de 1989 que sentenciou pela seguinte forma quanto a um crime de sequestro e outro de violação cometidos no Algarve na pessoa de uma estrangeira, valha o facto de terem decorrido 16 anos sobre a sua prolação e ser de admitir ou esperar que hoje uma nova mentalidade possa reinar nas instâncias:
«(…) II – Contribui para a realização de um crime de violação a ofendida, rapariga nova mas mulher feita que: a) Sendo estrangeira, não hesita em vir para a estrada pedir boleia a quem passa; b) Sendo impossível que não tenha previsto o risco em que incorre; c) Se mete num carro, com outra e com dois rapazes, ambas conscientes do perigo que corriam, por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras com comportamento sexual muito mais liberal do que o da maioria das nativas; d) E conduzida durante alguns quilómetros pelo agente, que se desvia da estrada para um sitio ermo; e) E puxada para fora do carro e tenta fugir, mas e logo perseguida pelo agente, que a empurra e faz cair no chão; f) Sendo logo agredida por ele com pontapés, agarrada pela blusa e arrastada pelo chão cerca de 10 metros; g) Tentando ainda libertar-se, e esbofeteada, agarrada por um braço e ameaçada pelo agente com o punho fechado; h) E intimidada assim, pelo agente, que lhe tira os calções e as cuecas, não oferece mais resistência e, contra a sua vontade, é levada a manter relações sexuais completas pelo primeiro; e i) Após ter mantido, à força, relações sexuais, com medo de que o agente continuasse a maltratá-la, torna-se amável para com ele, elogia-o, dizendo-lhe que era muito bom no desempenho sexual e assim consegue que ele a leve ao local de destino, onde a deixou.»
E, como se não bastasse para explicitar o que entendeu ser a “contribuição” da vítima para a violação, ainda se escreveu:
«Se é certo que se trata de dois crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora, ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, onde abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas».
Ilustração: quadro de Eugenio de Blaas, nascido em 1843.