O Estado implantou um sistema de gravação da prova produzida em audiências que conseguiu o pleno do elevado custo e do péssimo funcionamento.
Ante a ratoeira da deficiência do sistema de documentação da prova – vozes inaudíveis, excertos por gravar – surgiu o problema: como controlar tais deficiências que punham em causa o direito constitucional a recorrer invocando a prova produzida em julgamento.
O racional seria o funcionário que está adstrito à audiência e que coloca o sistema em funcionamento, assegurar não só que ele estava a funcionar capazmente como que o dito era efectivamente gravado em termos de perceptibilidade.
Mas não, talvez porque durante a audiência o funcionário tenha mais que fazer, talvez por aquela razão endémica segundo a qual são os do costume a suportar o custo das disfunções.
E assim surgiu sobre o assunto a querela jurisprudencial, com decisões em todas as variantes: quando interessados em recorrer da matéria de facto e tendo assim que indicar onde estava gravada a prova que demonstrava o contrário do dado como provado ou não provado na decisão recorrida, os advogados, ao aperceberem-se que, afinal, em vez de uma voz estava um silêncio ou um ruído, deparavam-se com tribunais que tinham por legal esta ideia: cabia aos advogados no final de cada audiência solicitarem desde logo as gravações, ouvi-las e, no caso de haver qualquer falha, reportá-la logo num prazo que foi também discutível – o que é que no Direito é certo, seguro e indiscutível, pergunto eu – sob pena de já não poderem levantar a questão por se tratar de uma nulidade sanável.
Isto é, às horas e horas passadas em audiência somavam-se mais umas outras tantas ou quase tantas horas a ouvir o já dito para saber se tinha sido ouvido pelos esquisitos maquinismos que o Ministério da Justiça comprara para equipar os tribunais, alguns servidos com mesas misturadoras com mais botões que os de um estúdio de gravação em alta fidelidade mas inúteis e, assim, meramente decorativos
Claro que ninguém pensou que estas horas perdidas são mais custos para o cidadão que se cruza com a Justiça e torna os advogados serventuários de um sistema oficial que devia ser o sistema público a controlar. É que a ideia tornada jurisprudência tinha a vantagem de matar recursos sobre a incómoda matéria de facto, porque com base na regra do se não se ouve tivesse dito, pelo que reunia o aliciante de ser tentadora.
É este o contexto que subjaz ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 13/2014, de 3 de Julho de 2014 [texto integral aqui] segundo o qual «a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».
Claro que os advogados com meios para dedicarem horas a preparar audiências, horas a nelas intervir e horas a ouvirem o que nelas se passou e que supostamente deveria estar gravado não se importarão porque a facturação reflectirá esse tempo todo, assim haja quem pague.
O problema são os outros, a esmagadora maioria, aqueles que subsistem de magros honorários pagos por remediados constituintes.
Mas, nesta lógica, que importam esses postergados pelo sistema? No final ainda ficamos todos à mercê de haver uma Justiça para ricos quando é a própria Justiça que prepara tudo para que só o rico se aguente ao seu custo. Irónico, não é?