A doutrina parece fora de questão: «Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo». Assim o decidiu o Acórdão de Relação de Lisboa de 07.03.13 [proferido no processo nº 2042/09.1IDLSB-A.L1-9, texto integral aqui].
O que tem interesse é ler a fundamentação, porque vivemos em anos de chumbo em que há muitos para quem o sigilo do advogado não é uma defesa da dignidade da classe, sim um modo de embaraçar a justiça.
«Estamos, assim, perante uma problemática semelhante à que esteve na base do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-10-2009, proferido no Proc. n.º 874/08.TAVCD-A.P1[2], no qual, citando Parecer do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados emitido para o caso, se lê:
«”Na verdade, um obstáculo subsiste, que impossibilita irremediavelmente a possibilidade de o advogado em questão vir a depor sobre matéria abrangida pelo segredo profissional.
“Com efeito, é jurisprudência pacífica deste Conselho Distrital que o advogado não pode depor em circunstância nenhuma em processo no qual seja advogado constituído. É a máxima: «Advogado e testemunha, nunca!» que a Ordem tem perfilhado, ao que sabemos, de forma unânime, em todas as decisões.
“Segundo doutrina que inteiramente acolhemos, e que encontrou tradução na jurisprudência da Ordem dos Advogados, “é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja ou tenha estado constituído”, pois que “isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia” – Augusto Lopes Cardoso, “Do Segredo Profissional na Advocacia”, ed. CELOA, 1997, pág. 82.
“É certo que o Tribunal não parece ainda ter em seu poder procuração que traduza esse mandato forense, nesta fase processual de inquérito. Mas tal não significa que o mandato não exista já. E o próprio advogado, ao ser inquirido, afirmou isso mesmo, dizendo que é igualmente mandatário da arguida neste inquérito, rectius, relativamente aos factos em averiguação neste inquérito.
“Ora, é sabido que o mandato forense se constitui pela declaração de vontade do constituinte, no sentido de que o advogado o represente ou patrocine num determinado assunto, sendo essa declaração de vontade (unilateral e receptícia) completada com uma declaração (expressa ou tácita) do advogado no sentido de aceitação desse patrocínio, que lhe é proposto pelo cliente. Assim se forma o contrato de mandato, que seguidamente se consubstancia numa procuração com poderes forenses, no caso de se tratar dum processo judicial.
“Portanto, pode existir a procuração e não constar ainda dos autos, por razões que só à parte e seu mandatário dizem respeito, como pode bem acontecer que o mandato já tenha sido ajustado mas ainda não tenha sido traduzido num instrumento de representação escrito.
“Num caso como noutro, o mandato já existe e as obrigações decorrentes do mesmo já têm de ser respeitadas pelo advogado, maxime as de índole deontológica e os deveres para com o seu cliente, entre os quais avulta o dever de guardar sigilo profissional.
“Por isso, a ocorrer mandato forense, bem andou o advogado em suscitá-lo e o sigilo — como vimos — não poderá ser dispensado neste caso”».
E, mais adiante:
«Uma vez que o CPP, não obstante tantas e tamanhas alterações, continua a estatuir apenas que “nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal … Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha” (art 39º nº 1 al d) e que “As disposições do capítulo VI do título I são correspondentemente aplicáveis, com as adaptações necessárias, nomeadamente as constantes dos números seguintes, aos magistrados do Ministério Público” (art 55º nº 1), “estão impedidos de depor como testemunhas: a) o arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade; b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição; c) As partes civis; d) Os peritos, em relação às perícias que tiverem realizado” (art 133º nº 1), “Podem recusar-se a depor como testemunhas: a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido; b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação” (art 134º nº 1);
Uma vez que o Código de Processo Civil, não obstante tantas e tamanhas alterações, continua a estatuir apenas que “Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária: h) Quando haja deposto ou tenha de depor como testemunha (art 122º nº 1)” e que “Estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes” (art 617º),
Importa afirmar que o estatuto jurídico-processual-penal da Testemunha não se compagina com o estatuto jurídico processual-penal, civil e estatutário-deontológico do Defensor constituído.
Enquanto “qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos caso previstos na lei” (art 131º nº 1), “é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova” (art 128º nº 1) e, maxime, “incumbem à testemunha os deveres de: b) Prestar juramento, quando ouvida por autoridade judiciária; d) Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas” (art 132º nº 1) e “Não pode acompanhar testemunha, nos termos do número anterior, o advogado que seja defensor de arguido no processo” (art 132º nº 2, todos do CPP),
“O defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido (discriminados nas 9 alíneas do nº 1 do art 61º nº 1), salvo os que ela reservar pessoalmente a este” (art 63º nº 1), “o arguido pode retirar eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, desde que o faça por declaração expressa anterior a decisão relativa àquele acto” (art 63º nº 2, todos do CPP), “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra” (art 1157º), “O mandato geral só compreende os actos de administração ordinária (art 1159º), “O mandatário é obrigado: a) A praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante; b) A prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão; c) A comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu; d) A prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir; e) A entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato (art 1161º); O mandatário pode deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas, quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar-lhe em tempo útil (art 1162º), “O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (art 1170º), “Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos artigos 258º e seguintes (art 1178º nº 1), “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participam nos actos ou sejam destinatários destes (art 1180º, todos do CPC), “O advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros” (art 84º), “A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca” (art 92º nº 1), “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas” (art 92º nº 2).
Conforme síntese efectuada no Acórdão de 07.02.2007 desta 1ª Secção Criminal do TRPRT, relatado por Maria Leonor Esteves tendo, como Adjuntos, Maria do Carmo Dias e Augusto Carvalho, como Presidente daquela, Baião Papão, publicado na CJ XXXIIII Tomo I / 2007, pág 207:
“Muito embora em nenhum dos preceitos legais que regulam a matéria da prova testemunhal se vislumbre a referência textual a qualquer impedimento que obste a que o advogado de uma das partes do processo preste depoimento durante a vigência da relação processual que o liga àquela, a inadmissibilidade de tal depoimento decorre não só do princípio da não promiscuidade dos intervenientes, princípio geral do processo, mas também de interesses de ordem pública. As razões justificativas que obstam à acumulação das qualidades processuais – seja de julgador com a de parte, seja desta com a de testemunha ou de perito -, que vários preceitos legais procuram prevenir, têm igual cabimento relativamente a actuações que possam produzir efeitos na esfera jurídica de qualquer dos interessados, como sucede com a do mandatário que, em termos jurídicos, se identifica com a do mandante. Por outro lado, a função da testemunha no processo, com o inerente dever de comunicar ao tribunal, de forma isenta, objectiva e verdadeira, todos os factos acerca dos quais seja inquirida (cfr. al. d) do n° 1 do art. 132°), não se coaduna com a do advogado que, não obstante participe na realização da Justiça, se encontra sempre condicionado pelo interesse da parte que representa e ao qual em muitos casos tem de dar prevalência. Nessa medida, os deveres processuais do advogado – que não raro implicam o dever de reservar factos de que tenha conhecimento quando esteja em causa o interesse do seu constituinte, não lhe permitem desempenhar as funções de testemunha de acordo com o figurino traçado na lei para quem ocupa esta posição processual.
“São estas as linhas gerais traçadas no Parecer n° E/950, aprovado em sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 22 de Setembro de 1995 (publicado em www.oa.pt) e de acordo com o qual, em processo penal, «Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo».