Estranham que em poucos casos os tribunais de recurso conheçam de facto a matéria de facto? Que haja reenvios em nome de razões cuja essencialidade faz a boca abrir de espanto? Que a renovação da prova um nado morto? As gravações um luxo inútil? Mas a História não ensina a transformar em pensamento o que é sentimento? É tudo, afinal, o triunfo da forma sobre o conteúdo, forma de exoneração da responsabilidade de decidir, meio de expeditamente despachar muito em pouco tempo, o fantástico reino da quantidade… Só a palavra «despachar» causa urticária…
O Direito é o combate pelo Direito.
E se há momentos em que esse combate assume uma faceta agónica é o momento dos recursos. Porque é então que há vencidos e vencedores. Podem ser questões incidentais, aparentemente de natureza meramente instrumental, mas não quer isso dizer que não sejam questões nucleares, a comprometer a sorte do caso. Momentos em que para os protagonistas do combate resta a última esperança, nos quais é maior a tensão dos intervenientes.
Ora o combate que aqui se assume, no que as recursos respeita, é desde logo um combate contra os ditames de um legislador que, desde há décadas, quis subtrair à filosofia estruturante do sistema de recursos a lógica do reexame da substância julgada para que restasse como objecto primacial de impugnação o modo formal pelo qual o tribunal recorrido conheceu a substância das coisas.
É um sistema em que se recorre mais do “como” e menos do “que”…
A História, como sempre, ensina, e ensina tanto mais quanto à amnésia colectiva se junta a arrogância intelectual dos que julgam que a vida começa com eles e sem eles termina, consumindo-se em irrequietude voluntarista permanente. Entre estes as gerações de legisladores estreantes na área do poder.
Aprende-se por exemplo, vendo as lições do passado, que no jogo das formas processuais o passo decisivo foi dado com o desaparecimento da apelação penal; não só como realidade jurídica, também como palavra – e no universo jurídico as palavras são conceitos, condensam uma semântica – , ela sumiu da dogmática legalista. E, no entanto, cito a inteligência do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, no seu Curso de Processo Penal, impresso em 1986, «a apelação é o recurso que verdadeiramente constitui um segundo julgamento; substitui, ao juízo da 1ª instância, um novo juízo, em matéria de facto e de direito, de 2ª instância». Eis o que desapareceu do universo da Justiça, a ideia de que o recurso é um novo exame, uma revisão do visto.
Admitiam-na, à apelação penal, as Ordenações. Mas em 1892, uma Lei de 15 de Setembro, determinava já, lançando a total confusão pulverizante no vulcânico território das categorizações jurídicas, que as apelações e as revistas eram julgadas como agravos. Era o ponto sintomático da desvalorização das nomenclaturas, miscigenando-as todas, desvalorizando cada uma. Citando Alves de Sá, coevo do que se passava: «Assisto aterrorizado desde 1892 a esta confusão tumultuosa em que caiu o foro nesta matéria». Palavras que se podiam tornar actuais.
Ao chegar-se do Código de Processo Penal de 1929 já o conceito de apelação penal tinha sido, entretanto, varrido da terminologia da lei adjectiva criminal e encontrávamos apenas um princípio, que nos acompanhou a todos quantos, eis o meu caso, tivemos esse código como companhia em dias de preocupação e noites de insónia – já retalhado, acrescentado, parcialmente revogado e derrogado – segundo o qual – e eis o artigo 649º – «os recursos em processo penal serão interpostos, processados e julgados como os agravos de petição em matéria cível, salvas as disposições em contrário deste código».
Não era esta, a que citamos, uma simples norma jurídica sobre tramitação, era um normativo sobre a natureza das coisas em matéria de recursos, a dar-lhes uma semântica e sobretudo uma direcção interpretativa em via reduzida. Dizia-se «agravo» para que ficasse entendido que não se queria dizer «apelação». E dizia-se «agravo de petição» categoria jurídica que havia já caído em desuso.
É que natureza do agravo era determinada sobre a incidência do seu objecto, a circunstância de recair sobre tema processual, que não sobre o mérito da causa.
No enunciado da lei subsidiária, e como tal aplicável em regime de intergração, rezava o Código de Processo Civil de então [o de 1876] que «das decisões de que não pode apelar-se e que excedam a alçada do juiz compete agravo». E quanto ao critério pelo qual se encontravam os casos de que cabia apelação, resumia o Professor Alberto dos Reis, no seu livro Breve Estudo sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial: o legislador, havia reservado a apelação «para as sentenças que conhecem do mérito ou do fundo da causa, compreendo-se na palavra causa certos e determinados incidentes».
Ou seja, o desaparecimento a partir de 1929 da categoria das apelações penais significou como única ilação possível, uma indicação legislativa no sentido da incognoscibilidade tendencial do mérito das causas penais. Era a restrição dos recursos no que se refere à sindicabilidade das causas penais.
É que esse Código de Processo Penal de 1929 havia determinado, no seu artigo 665º, que «as Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em primeira instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais nos tribunais colectivos e das proferidas em processos em que intervenha o júri (…)» [salvo o caso de anulação da decisão do júri em caso específico].
Quer dizer: o mérito da causa, a partir da reforma processual penal de 1929, e em função daquele citado preceito, passou a ser matéria cognoscível pela Relação apenas quando a decisão recorrida fosse oriunda de juiz singular, desde que não se prescindisse de recurso, caso em que [artigo 532º] «escrever-se-ão resumidamente na acta da audiência as respostas do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos e outras pessoas que devam prestá-las».
Eis, com força de lei, a intangibilidade das decisões do colectivo sobre o mérito da causa, o fim da apelação penal nas causas importantes, as que eram julgadas em processo de querela, puníveis com penas mais graves.
O sistema, na sua natureza imanente, já era suficientemente explícito, mas uma vertente prática do mesmo demonstraria a sua verdadeira essência e sobretudo os propósitos que animavam os seus autores. Como o clarificou um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1932, mesmo depois da alteração do CPP em 1931 «os depoimentos das testemunhas perante o tribunal colectivo não são escritos». Ou seja era impossível a Relação sindicar a prova produzida em audiência devido à ausência de registo da mesma. A substância, os factos, uma vez adquiridos, fixados estavam.
Mas o refinamento do sistema ainda estaria para vir. Em 1934 um Assento de 29 de Junho enunciaria uma jurisprudência que, de acordo com o sistema de então, valia como lei, e como tal obrigatória, segundo a qual a alteração pelas Relações das decisões dos colectivos só poderiam ocorrer «em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».
Como explicaria o Conselheiro Maia Gonçalves, usando linguagem mais clara para traduzir esta formulação esfíngica, em nota ao artigo 665º do CPP de 1929 «em face do assento de 29 de Junho de 1934, a competência das Relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da primeira instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as Relações altere, as respostas aos quesitos».
Era o que se popularizou como a «ditadura dos colectivos» em matéria de facto, sistema do qual decorria que o julgamento ante juiz singular era mais garantístico do que o corrido diante tribunal colectivo, por admitir o seu reexame em sede recurso quanto às questão de facto, a conhecer pelas Relações.
Como o resumiam Borges de Araújo e Gomes da Costa – compilando as lições proferidas pelo professor Manuel Cavaleiro de Ferreira de 1940, «as Relações só tomam conhecimento da matéria de direito, pelo menos nos processos de querela [a julgar pelo colectivo], pois quando o tribunal colectivo é chamado a julgar a prova não é escrita».
Eram tempos difíceis esses os da intangibilidade do veredicto de facto nos casos penais graves, tempos de chumbo em que vingava lei que permitia que se entendesse que «em recurso penal, embora só interposto pelo réu, pode o tribunal agravar a pena» (Assento do STJ de 4 de Maio de 1950); ou esquecem os mais novos que a proibição da reformatio in peius – no que significa de impedimento de agravação da pena em caso de recurso interposto pelo arguido – só foi lei a partir de 1969 (com a alteração do artigo 667º do CPP de 1929 pela Lei nº 2139, de 14 de Março, sendo primeiro-ministro o professor Marcelo Caetano)?
A inapelabilidade do julgamento da matéria de facto surgiu em Portugal com a introdução do júri, figura que fomos importar ao modelo estrangeiro, sem tradições entre nós e que faleceria de morte natural pela década de quarenta, para ser ressuscitado em 1975, tendo vindo a viver em hiatos de sobrevivência sem grande esperança de prestígio e sobretudo com duvidosos resultados.
É com o júri que mingua a apelação penal. Mas – e cito de novo o professor Cavaleiro de Ferreira no seu texto pedagógico de 1986, talvez o mais filosoficamente conseguido, porque terminal – «posteriormente, e já neste século, com a criação dos tribunais colectivos que substituíram o júri, insinuou-se sub-repticiamente a ideia de que o tribunal colectivo devia herdar não só a competência em matéria de facto do júri, mas de igual modo a presunção de infalibilidade. Foi um erro que as circunstâncias em que se processaram as sucessivas reformas processuais tornaram possível».
Eis, em suma, o que pretendia provar: morta a apelação criminal, implantado o sistema do agravo penal, estava aberta a porta para a infabilidade dos tribunais colectivos em matéria de facto. Vencer um tal sistema e as idiossincrasias que ele potencia não se afigura tarefa fácil, pode tornar-se, aliás, uma missão impossível.
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Dê-se um salto no tempo para verificar em que medida é que a cultura do agravo penal como sucessor da extinta apelação penal deu azo a uma nova categoria a da chamada “revista alargada”, o qual, em termos práticos, não resistiria à doutrina dominante nem, sobretudo, às resistências jurisprudenciais que tinham ganho império e expressão de poder.
Tudo sucedeu com o Código de Processo Penal de 1987.
Dele decorreram várias ideias discursivamente novas e candidatas esperançadas a futuro. O problema foi a pragmática do sistema e a cultura que o caracteriza que rapidamente lhes neutralizaram a ambição de perdurabilidade.
Enunciemo-las para que o pessimismo realista de que faço cultura possa demonstrar.
Em primeiro lugar verteu o legislador em lei a ideia de que todas as espécies de recurso, mesmo os atinentes à temática meramente jurídica – e inclusivamente aqueles outros em que os poderes cognitivos do tribunal sejam circunscritos à matéria de Direito – admitem [artigo 410º, n.º 2 do CPP] a hipótese de serem conhecidas certas questões – tarifadas em três casos paradigmáticos – (i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (ii) contradição insanável na fundamentação (iii) erro notório na apreciação da prova – que já não meras questões jurídicas podendo ser, pelo menos a últiam, de cunho fáctico.
A consagração deste conceito não se alcançaria, porém, sem dificuldades, porquanto certa jurisprudência cedo de encarregou de determinar a medida em que tal possibilidade de alargamento dos poderes cognitivos – digamos, do STJ – não poderia ser suscitada como tema de recurso mas sim operada apenas oficiosamente pelo tribunal de recurso ao conhecer o tema jurídico em causa e desde que os vícios em causa resultassem do próprio texto da decisão recorrida [«por si só ou conjugada com regras da experiência comum»].
Esta dupla limitação – que a lei no seu enunciado expresso não previa como tal – o da ostensividade literal do vício e o da cognoscibilidade apenas ex officio viria, claro, a reduzir o alcance daquilo que era o primitivo escopo do legislador. O tema alargado passou a ser um tema passível de ser relevado discricionariamente a talante do tribunal de recurso.
Para além disso, a densificação do conceito de «erro notório» na apreciação da prova – aquele dos casos típicos em que a questão de facto justificava o qualificativo de «alargada» ao recurso de revista – foi de tal modo tornada exigente que ela se tornou de quase impossível aparição, acantonada aos casos em que a ostensividade do erro fosse gritante que quase se apodaria de grosseiro.
Em segundo lugar, retornou para a lei processual penal a categoria conceptual da «apelação» – quando a Lei da autorização legislativa da qual emergiu o CPP novo consagrou [Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, artigo 2º, n.º 2, ponto 72] que ocorreria no novo Código a «atribuição ao tribunal da relação de competência para conhecer, em apelação, dos recursos interpostos de decisões interlocutórias e finais do juiz singular e de decisões interlocutórias emitidas pelo tribunal colectiva, e para, em certos casos, renovar a prova, caso não reenvie o processo para o tribunal colectivo» [itálico nosso].
Tratava-se de pôr em marcha uma ideia que o preâmbulo do Código, ingénuo porque confiante, assim exprimia: «Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-o num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção real de pessoas. Por isso se submetem os recursos ao princípio geral – aliás juridico-constitucionalmente imposto! – da estrutura acusatória, com a consequente exigência de uma audiência onde seja respeitada a máxima da oralidade».
Ora feito o balanço ao escopo e âmbito das audiências nos tribunais superiores e ao modo como funcionaram, nomeadamente no que respeita a essa «máxima oralidade» e essa proclamada «apelação», elas acabaram por entrar numa tal caducidade por não uso que o legislador teve, misericordioso, que torná-las opcionais, donde de aparição raríssima para possível desaparecimento, também aqui pelo não uso.
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, tentou-se, com este novo Código de Processo Penal, a consagração de um sistema de renovação da prova, pelo qual a segunda instância, mais do que um tribunal de rescisão, funcionaria como um tribunal de um verdadeiro segundo julgamento, pois ocorreria também a «consagração, para todas as espécies de recurso ordinária, interposto da decisão final, da garantia do contraditório, sem possibilidade porém, de réplica nos recursos que sejam exclusivamente de direito» [ponto 71, do preceito citado].
Considerando o número de vezes em que ocorreu a renovação da prova – a meu conhecer nunca – viu-se em que medida a consciência da inutilidade da novidade a tornou candidata à morte anunciada logo no acto de nascer.
Enfim, determinou o legislador do novo Código de 1987, a implementação de um sistema de reenvio do processo «para o tribunal colectivo» [ponto 72 da Lei de autorização]. Eis o que vingou [e também para o tribunal singular], afinal um sistema de pura cassação com consequente anulação do antes decidido.
Neste panorama de realismo desolador, tentou a última reforma do CPP [por alteração ao seu artigo 431º] uma abertura controlada à modificabilidade pelo tribunal da Relação do veredicto de facto constante da decisão recorrida. Isso em três casos.
Em primeiro lugar, reiterando-se que isso ocorre no caso de ter havido impugnação da prova, com o cumprimento nas conclusões da motivação do recurso de tais ónus de indicação do lugar onde a prova se encontra e a menção a qual o facto probando que pretende fazer triunfar em substituição do provado que se abriu a porta a um exercício de escrita tão formulária que se corre o risco de nunca se acertar no modo de colocar a questão e ver por esta forma perigar a questão em si. Recorrer em matéria de facto passou a ser uma arte de escrita em que triunfam formalidades sobre substâncias.
Em segundo lugar, e em aparente inovação, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base», fórmula aparentemente liberal mas que redunda, afinal, numa revivescência do espírito do Assento de 1934, acima visto, com a cultura restritiva que lhe detectámos e que a jurisprudência logo aplicou.
Enfim, eis a insistência na ilusão funesta, «se tiver havido renovação da prova».
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A lógica rescisória inerente ao recurso penal é, não tanto uma lógica meramente revogatória mas diversamente um sistema resolutivo, pois que fundamenta-se numa sanção anulatória pela falta de fundamento da decisão recorrida. Mas esta lógica concatena-se com uma outra, a denominada lógica de substituição, em que o tribunal de recurso, substituindo-se ao primeiro, profere uma decisão que ocupa o espaço jurídico antes preenchido pela primeira.
Ora na mecânica prática das coisas a primeira é mais tentadora e talvez por isso mais frequente. Assim sucedeu.
Fechemos voltando à História.
Primeiro, para lembrar em que medida o despacho de pronúncia – verdadeiro exame de mérito sobre a suficiência indiciária da acusação – que começou historicamente por beneficiar, ainda nos tempos da Ditadura, de um duplo grau de jurisdição, se tornou hoje, sob a bandeira da Democracia, absolutamente irrecorrível, tornando insindicável a fase preparatória, mesmo quanto a questões de legalidade, o que é um escândalo legal.
Esquecem os que em nome da eficácia e da celeridade – como se amanuenses fossem de um serviço administrativo – que só há independência judicial havendo sindicabilidade dos actos judiciais, nomeadamente dos actos incertos, típicos das fases embrionárias do processo em que o magistrado autor tem o benefício de consciência de proferir a penúltima palavra.
Em 1939 o único sistema de recurso de mera revogação era o recurso extraordinário de revisão, todos os demais eram de substituição: o tribunal ad quem substituía-se ao tribunal a quo e proferia a decisão que tinha como justa. Só o contencioso administrativo era de mera anulação.
Em 2011, os casos em que o tribunal recorrido vai para além da mera rescisão e arrisca consagrar uma decisão de substituição são, na lógica do sistema, fora dos casos de dosimetria punitiva ou escolha da espécie da pena, excepções.
O recorrente penal avisado já não se ilude quanto ao reexame do caso, tem esperança, isso sim, numa segunda oportunidade que lhe advenha da cassação do decidido. A lógica antiga do contencioso administrativo triunfou sobre as exigências substanciais que deviam ser as da Justiça penal.